terça-feira, 31 de janeiro de 2012

 Pensar as cidades – habitá-las

A casa lutava bravamente... a princípio ela se queixava. Gaston Bachelard


Um dos mais importantes eventos nas últimas duas décadas envolvendo coletividade e discurso comum para a transfomação social – o Fórum Social Mundial, encerrou suas discussões no último domingo. Nesta versão, o temário girou em torno da vida urbana, “Uma nova cidade é possível”, entre a afirmação e a pergunta, teve-se a cidade, inclusive a grande métropole, como o lócus de um redirecionamento do olhar sobre o meio, ou seja, em todas as direções, para o alto e nas grandes extensões, pensar a cidade. Uma vez que a questão ambiental esteve tomada por quase meio século de um olhar quase biologizante sobre o meio. Um olhar estremamente preocupado em promover a preservação de espécies e mobilizar modos para que se produzisse alimentos da forma mais sustentável possível, e uma infinita parcela de recursos e esforços fosse dispensada para tanto, sem lograr êxito.

Revelador que algo tão importante como as noções ecológicas levadas a tramar a urbanidade, não tenham sido consideradas ao longo desse processo de criação de protocolos, em que o pensamento sobre o meio ambiente artificial se fortaleceu no plano do discurso e das convesões escritas e não na prática, sobretudo como atitude liberadora capaz de  gerar práticas de liberdade. Enquanto isso, as cidades fervilham como cárcere estatal – sem estruturas necessárias, equiamentos, serviços, a  propalada qualidade de vida. Nos anos iniciais do novo milênio viu-se a ocorrência de sinistros há bem pouco tempo inimagináveis, como o furacão em Santa Catarina, enquanto os boletins climáticos e as previssões de mudanças para o clima se tornavam “apenas” cada vez mais alarmistas. Não sem razão. Quem poderá prever para quem trabalha a máquina da verdade midiática? A quem interessa o extermínio de vasta parcela da população?

O indivíduo está para a cidade hoje, como um elemento, um pequeno ponto em um estado constante de guerra. Fracassando sempre, perdendo para o saneamento inexistente, as doenças que decorrem do descaso político, para o trânsito sempre incentivado pela propaganda cada vez mais neurotizante do último modelo de veículo automotor, que jamais  assume a parcela de responsabilidade de pensar as estruturas espaciais adequadas ao trânsito, e para o estado constante de violência que o cerca por todos os lados, motivada pelas desgraças individuais e pelas posições coletivas inflacionadas pela ausência de jurisprudência.

Em meio século as populações urbanas cresceram, claro que isso também favoreceu cada vez mais a concentração fundiária de territórios rurais, nada foi executado sem se pensar que os que lucram sempre, devem lucrar ainda mais com a situação. Contudo, politicamente – partidariamente falando, no caso do Brasil – são incentivadas a ocupação de áreas consideradas frágeis a esse destino: encosta de morros, matas ciliares, áreas de vazantes de rio, locais conhecidos de drenagem natural. E a natureza se transformou em um problema, assim como as populações.

Há cerca de 40 anos atrás Belém do Pará, considerada uma das metrópoles da Amazônia, era ainda uma cidade provinciana, com vastas áreas verdes a cercar o núcleo, mas bastaram duas décadas de política neoliberal para a cidade se transformar em um verdadeiro barril de pólvora – altíssimos índices de violência e morte atreladas à todas as situações anteriormente descritas. Como uma bomba relógio, Belém se transformou um lugar indesejável, concentrando em suas imensas áreas de invasão um gigantesco problema social – áreas doadas ou liberadas por governos corruptos no exercício pleno da insaciável barganha pelo voto. Como Belém, as grandes cidades brasileiras se tornaram imensas periferias. Populações inteiras entregues à própria sorte em territórios controlados pelos fora-da-lei sob a proteção dos que se dizem cumprir a lei, numa relação de poder em que a única regra que vale é o vale tudo.

No Fórum se fez ouvir lados opostos – a presidente Dilma lá esteve com seu discurso sem simbiose e aliança, discurso frágil como um ovo. Mas quem fez a omelete foi o Sociólogo e professor Boaventura de Sousa Santos. A certa altura, ele afirmou que "o grande desafio do direito à memória é que é o direito ao futuro, mas também ao passado e ao presente". Diferenciou o direito à memória do direito à história. "O direito à história é o direito às histórias silenciadas pelo saber e pelo poder oficial. São aquelas histórias que aprendemos nas escolas e que vigoram como sendo a verdade dos tempos. A isso chamo de sociologia dos ausentes", disse. É o silêncio em relação aos oprimidos, discriminados até pela forma de seu sofrimento, seja a miséria, a fome, a doença, a droga, o desespero, a loucura. Sofrimentos que são engendrados cotidianamente nas vértebras das cidades.

"O direito à memória é outra coisa. É o direito a vivências e experiências pessoais que constituíram a subjetividade [de indivíduos], e que eles têm que lembrar e serem respeitados por isso", explicou. Segundo Boaventura de Sousa Santos, a verdade histórica existe para essas pessoas, mas a subjetividade dessa memória permite apenas o seu conhecimento, jamais sua transmissão. "A verdade para eles está inscrita nos seus corpos, no seu sofrimento. Essa memória é intransmissiva porque as dimensões do sofrimento nunca se pode transmitir, mas pode ser reconhecida." O silenciamento, neste caso, também "torna impronunciável a revolta".

No dia em que mais um bueiro explode no centro do Rio de Janeiro, entre tantos mais que irão explodir, como resultado de um progresso improvável e sua lógica imoral, vê-se o quanto essa fala é coerente, já que há muito os direitos às vivências sociais na cidade foram suprimidos, não apenas neste caso, mas de forma coextensiva ao caso dos três prédios que ruíram no centro da cidade maravilhosa, com seus vinte e tantos mortos, e mais aquele, e outro e tantos mais na contabilidade perversa do descaso, da indiferença? Pinheirinho, em São Paulo, com as centenas de famílias arrancadas de suas frágeis residências, que apenas por cinismo político da municipalidade deviam considerar como lar. Mas aqui se pode desconstruir Boaventura, nesse caso a memória de sofrimento se transmite biologicamente aos seus descendentes, pela permanente falta de acesso, ampliada centenas de vezes, elevada ao cubo. Uma conta que os governos não assumem e se negam a pagar e que promove o desespero sempre renovado – Em nossas casas grudadas umas às outras, temos menos medo (Gaston Bachelard) – até quando?

Juliete Oliveira

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012


Boaventura de Sousa Santos no Fórum Social Mundial/2012
Se o papel da crise é apontar a necessidade de refletir, o discurso sobre a crise deve ultrapassar sua própria constatação, sob pena de ser apenas um apelo sem eco, sem ressonância e, ao contrário, acabar por afirmar que não há saída; ou seja: imobilizar o próprio movimento crísico. Esta saída não é a solução ou a utopia, mas aquilo que é vital para a existência em seu devir, que é primeiro continuar vivo existindo. Para além da vontade asfixiante de uma democracia de classes, que preserva o que há de mais grotesco e desumano em nome do conforto de meia dúzia de bem nascidos!

sábado, 21 de janeiro de 2012


                                                 a haroldo de campos, sem poder ir mais longe


chegou a hora


você & ele sabiam – últimos a saber talvez
livros não dizem nem cartomantes gregas
agamenon ou ésquilo não deram prova
sinal realmente claro – pista ou rasura
lacrado em sigilo todo destino
o tempo rigorosíssimo omitiu
saber é preparar-se pro engano
viver: areia transe rastro exílio

ney ferraz paiva
imagem: agnnes donnadieu

domingo, 15 de janeiro de 2012

Biutiful – um outro nome para a beleza

por Ney Ferraz Paiva

Bertolt Brecht, em “Aquele que diz sim, aquele que diz não”, argumenta, na introdução da peça, provocador como sempre: “O mais importante de tudo é aprender a estar de acordo. Muitos dizem sim, mas sem estar de acordo. Muitos não são consultados, e muitos estão de acordo com o erro. Por isso: O mais importante de tudo é aprender a estar de acordo...” Na verdade, o personagem de Brecht quer dizer que nada pior que estar de acordo, nada pior que balançar a cabeça e se acomodar. Não ser intercessor entre os que pensam e falam. Vivemos em boa parte das ocasiões e situações esse contexto de engolfamento e esvaziamento. Sobretudo por uma característica que nos uni, estarmos todos praticamente exilados nas cidades modernas, qualquer uma. Aí as pessoas se matam, seja na província de Salzburgo de Thomas Bernhard, seja na Salgueiro de Raimundo Carrero, sertão central nordestino. A cidade é uma máquina perversa com seus grupos familiares, amigos,  vizinhos, e suas leis e regras infames. Mesmo a vida subterrânea e clandestina em Barcelona. Porque agora não se  está de volta a um poema de João Cabral, idos de 1950, em plena e farta modernidade urbana, mas a um filme recente de Yñárritu,  “Biutful”, em que o lugar da individualidade, da singularidao qde em face ao crescimento da pressão social em todos os cantos do mundo contemporâneo é mais que asfixiante e nada celebratória. “Papai, como se escreve biutiful?” São 20:10 de uma noite suspensa e superficial , uma noite qualquer que se perderia não fosse o afeto, porque ali  o tempo é outro como  é outra a língua. O pai tenta arrumar o cabelo da filha. Sabe-se o que acontece quando as mulheres arrumam o cabelo. Mas ali, nos escombros daquela noite quase impossível, nada acontece. Pai e filhos são aspirados pela conformidade de esvtar num lugar que não pode ser casa nem lar para eles. Pouco importa se imaginem comer juntos o menu improvável das praças de alimentação dos grandes shoppings. Se ao saírem pela manhã – ele para o “trabalho” e os filhos para a escola, nada acontecerá, que para eles nada está reservado, a não ser o verniz da indiferença no centro da metrópole. Nada lhes assegura nada. Nenhum evento ou rotina é capaz de arremessa-los para dentro da realidade regulada pelos mecanismos do capital. Assim dissuadidos, nenhum está, sequer tecnicamente, uma vez que ilegais, sob a proteção do Estado. Diga-se: de nenhum de seus mecanismos de proteção. Amanhecer ali à volta do bairro, na remota periferia, é desenterrar-se para logo em seguida sucumbir de vez. Senegaleses, chineses, mexicanos. Da rua para a cadeia e daí para a deportação. Ou: do galpão para o “trabalho” ilegal e daí para a morte. Não há saída, diz-se de novo. Yñárritu grita. Como na “Primeira Elegia de Duíno”, de Rilke: “Quem, se eu gritasse, me ouviria pois entre as ordens dos anjos? E dado mesmo que me tomasse um deles de repente em seu coração, eu sucumbiria ante sua existência mais forte. Pois o belo não é senão o início do terrível, que já a custo suportamos, e o admiramos tanto porque ele tranquilamente desdenha destruir-nos.” Sequer um Mundo Espiritual, uma mitologia, uma esperança – quem sabe o vínculo tênue da poesia com um mundo bárbaro, sinistro, obscuro, onde a palavra “biutiful”, suas redes e circuitos se conectem e se combinem com certa pronúncia ou sotaque, e a beleza volte a ter nome, um certo nome que não seja uma máquina de produzir vazio. E mais do que aprender a estar de acordo, possa se soletrar o ruído do mar, temer as coisas que vivem ali embaixo. E saber que quando as corujas morrem sai uma bola de pelo de seu bico...

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

AQUELE RIO SEM PLUMAS

[Minha família não era rica], era uma família tradicional. Não tive infância luxuosa. Aqueles luxos que certos escritores atribuem ao engenho devem ter sido no princípio da Colônia. Nenhum dos engenhos de meu pai tinha luz elétrica, de modo que, quando começava a escurecer, as empregadas punham todos os candeeiros sobre a mesa, iam acendendo um por um e levando para diferentes cantos para pendurar. Eu fiquei no engenho do Poço do Aleixo antes de me alfabetizar. Então meu pai foi morar no Recife, e nós tínhamos uma professora, a dona Natália, para mim e meu irmão. Depois que nós estávamos suficientemente alfabetizados, entramos para o Colégio Marista. A gente passou a ir ao engenho apenas nas férias. Nessa época, os empregados compravam os folhetos e levavam para eu ler. Eu ficava sentado num carro de boi velho e todos ficavam em volta, sentados no chão, ouvindo.

João Cabral de Melo Neto


João Cabral sai de uma esfera familiar tradiconal de Pernambuco, uma esfera pacata, empobrecida, sem ligações com as classes dominantes do estado e do Nordeste. Menino de engenho como quase todos os demais, daí atravessa para o mundo da escrita e da leitura. Penso mesmo que João Cabral teve entre os poetas modernos um dos mais intensos relacionamentos com a leitura, a grande leitura - tentar achar os grandes autores, ao passo que escrevia a grande poesia de que foi capaz. Autor não por acaso de um dos mais fascinantes poemas escrito em nossa língua, "O cão sem plumas". A que todos devíamos amar e conhecer. Políticos, professores, alunos, educadores ambiental, engenheiros de todas as marcas e utilidades, garis, lavadeiras, jornalistas, médicos, jogadores de futebol, amantes, aventureiros, namorados, porteiros, policiais, motoristas, empregadas doméstica. Um teste de selação a qualquer coisa, emprego, por exemplo, era saber de cor um trecho do poema. Ter a rua João Cabral de Melo Neto bem na beira do imponente rio da cidade. E no sertão, a rua da praça principal, onde se escutaria nas missas o poema reunir o povo. "O cão sem plumas" é o Nordeste com uma das menores expectativas de vida do mundo, 27 anos. Menos ainda que a Índia, Bangladesh, Haiti. É esse o dado inaugural do poema escrito em Barcelona em 1950. O estômago sem vida do Nordeste. É a esse Nordeste que João Cabral retorna quase que num tratado social. Um Nordeste que o impressiona porque está dentro dele desde sempre, nunca apartado pelos outros temas - para que não perdesse tudo ao desprender-se do que já possuía. Grande lição de coisa aos nordestinos. Lufadas de vento morno, ardente. Tantas são as coisas definitivamente nossas das que não se pode abrir mão, presas e atadas ao corpo, tatuadas na memória. A cidade, o caminho, o rio...

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.
 
Ney Ferraz Paiva & Juliete Oliveira
imagem: Maryana Carvalho, Rio São Francisco, Cabrobó-PE

terça-feira, 6 de dezembro de 2011


De qualquer maneira, o poder é um engodo, a verdade é um engodo. Tudo está no atalho fulgurante onde se encerra um ciclo inteiro de acumulação, ou um ciclo de poder, ou um ciclo de verdade. Nunca de inversão, nem de subversão: o ciclo deve se completar. Mas pode completar-se instantaneamente. É a morte que está em jogo neste atalho.
Jean Baudrillard

Por quem os sinos dobram? Por quem chora Fafá de Belém? Ninguém acredite que se trate de um testemunho pungente que não diferencie e até mesmo estigmatize os habitantes do sul do Pará e futuro estado do Carajás. Quando Donne escreveu “Meditações”, colocou a sua verve a serviço da indignação de ver irmãos massacrar irmãos. Foi um lamento a que o mundo se referiu a partir de então pela potência do relato. Quando Fafá de Belém chora o que está em jogo é a imprevisível partilha de poder, jamais outra coisa, que sempre se deu no território paraense; e ela o faz munida da mesma mesquinharia característica daqueles aos quais sempre interessou manter a condição feudal do estado e que de imediato resulta no abandono das regiões que pelteiam a divisão.

Nenhuma eficácia há no choro da nobre senhora, por conseguinte ele perpetua-nos a um histórico em que milhares de pessoas mantêm-se desprovidas de dignidade e, portanto desse choro não poderá resultar sequer os afagos midiáticos e publicitários estimados pelos marqueteiros de plantão. Se escorresse uma lágrima sequer de reivindicação em seus gemidos, outra não seria a da integração, da manutenção do poder e dos privilégios de uma política de exclusão. Não se trata de outorgar uma partilha, é claro, isso arruinaria o sistema estabelecido, que repousa, como se sabe, na superexploração de todos, seja de que quadrante for. Daí que Fafá, como Jesus (este por outros motivos), chorou. Certamente que os sinos da basílica de Nazaré, não dobram, nem nunca dobraram pela população do sul e sudeste do Pará e que Fafá de Belém não chorou pelas vidas que são desperdiçadas, amesquinhadas nessa região pela mais absoluta ausência de atuação política. Região a que já se chamou de “almoxarifado do estado”. Um estado que se faz representar apenas para receber no fim do mês os seus honorários, ainda que sempre falte: saúde, educação, segurança pública, estradas, moradia, condições de vida, justiça, enfim. Não percamos tempo com litanias estéreis ou mimetismos nauseabundos.

Dividir o território talvez seja a única objetividade fluente em defesa das populações de todo o Pará, a se possibilitar aos dois extremos a estrutura social, os equipamentos e serviços a que se pode ansiar e pretender. Já que há décadas, que em nome de uma suposta manutenção do território, vem se asfixiando a quase totalidade deste. Todos sabem, e não é preciso acrescentar o “fantasma” dos dados disto que significa manter atrelado ao estado estas terras – sabe-se que vale muito aos parlamentares sediados em Belém, sobretudo pela impressionante “reserva” eleitoral, os eleitores expostos nas mesas de negociação; os milhares de hectares a se repartir entre os pares e ainda os recursos naturais (leia-se recurso como unidade monetária, moeda de troca) em condições de preservação que poderão garantir ao Pará a manutenção de seu posto como unidade representativa da Amazônia, um dos maiores invernistas de boi (Vida de gado!).

Significa sobretudo a manutenção de um estado de exceção, pela ineficácia, incompetência e descaso do poder público, da fome, da violência e da morte, já que sabemos que um território nunca é homogêneo e desde já ultrapassado na mais segura fronteira, e que por ele transitam e se deixam ficar cada vez mais populações subjugadas; uns tantos que adquiriram uma oscilante independência econômica, mas sempre minoritária, a arruinar os mais próximos; outros, bem poucos, que se organizam e se revoltam e intentam conquistar a soberania, a justiça, um tanto da alegria de viver, simplesmente... Onde as velhas e emperradas oligarquias cessem (inclusive seu choro e lamento) e se possa começar a começar...


Juliete Oliveira

segunda-feira, 31 de outubro de 2011


JOÃO PRIMO, irmão, amigo, companheiro


... Clandestino, enterrei teu corpo.
Na cova minúscula – e livre – do meu poema
Onde a cruz silenciou
Teu nome aceso no vermelho, latejando,
Fazendo nascer a manhã sob as pedras.
(Gelson de Oliveira)


O município de Altamira, no Pará, é o maior do mundo em extensão territorial. Localiza-se na maior reserva de biodiversidade do mundo, a floresta amazônica. A região será impactada por um dos maiores empreendimentos hidroelétricos do mundo, a usina de Belo Monte. Em números absolutos tudo ali é gigantesco! É gigantesca também a injustiça social que devora a vida no estado do Pará. Sete são os palmos da terra enlutada pelas centenas de trabalhadores rurais assassinados no estado - só este ano, sete é a soma desses corpos. “Esta cova em que estás, com palmos medida/É a conta menor que tiraste em vida” (João Cabral). Para os movimentos de luta pela terra e pela biodiversidade a questão ultrapassa os coeficientes numéricos: ao  longo dos últimos 40 anos se perdeu, inexoravelmente se perdeu: lideranças, oportunidades, justiça social e energia humana.

Na semana passada foram julgados os dois últimos assassinos de uma chacina ocorrida há 26 anos, em São João do Araguaia. Essa soma de anos eu a multiplico pelo assombro de ter visto as fotos dos corpos, inclusive de crianças, durante um encontro de jovens ocorrido um anos depois em Marabá. Na época a chacina foi denunciada com um número maior de mortos do que o divulgado pela polícia militar - e as fotos confirmavam a visão terrível. Ainda bem jovem, muita coisa eu não compreendia, contudo a injustiça e a impunidade impostas à região pelos idos de 1985 fez-me desenhar uma trajetória de inconformismo e um senso de justiça que me conduzem até hoje. Em “Breve Meditação sobre um Retrato de Che Guevara" Saramago diz: “Che Guevara é só o outro nome do que há de mais justo e digno no espírito humano. O que tantas vezes vive adormecido dentro de nós. O que devemos acordar para conhecer e conhecer-nos, para acrescentar o passo humilde de cada um ao caminho de todos”.

João Primo, irmão, amigo, companheiro da terra, assassinado no último sábado em Miritutuba, município de Itaituba-PA, era mais um defensor da natureza que alinhava seus passos e ações ao pensamento moderno do coletivo, do sustentável, do ecológico (no sentido mental e ambiental) na Amazônia. Seu nome agora se soma aos que no passado e no presente honram a mesma bandeira: Gabriel Pimenta, Chico Mendes, Paulo Fonteles, Família Canuto, Manuel Gago, Brás, Expedito, Dorothy, os 19 da fazenda Macaxeira, José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo. Mortos por conta do descaso e  omissão do poder público. A luta pela terra na Amazônia deixa ainda rastros de sangue por tantos caminhos. São os passos ativos da coragem, da ousadia, das ações em defesa da comunidade, do território, da justiça e da vida. E eles prosseguem.



Juliete Oliveira
Salgueiro – PE, 31 de outubro de 2011
imagem: Ricardo Rezende