segunda-feira, 16 de setembro de 2019




A casa nossa de cada dia!

É preciso que a pessoa se lance no centro, no coração, no ponto em que tudo se origina e toma sentido: e eis que se reencontra a palavra esquecida ou reprovada, a alma.  (René Huyghe)

                Para Gaston Bachelard ‘a casa é o nosso canto no mundo’. Complemento dizendo que existem infinitos tipos de casas e de maneiras de habitá-las. Em Palmas/TO a casa é para quem pode pagar por ela, avultosas somas mensais. Para os nobres! Há uma clara e precisa divisão de mundos com as suas casas próprias. Isto ficou muito claro na ação de ocupação de uma quadra do plano diretor sul da cidade, o movimento de ocupação composto por cerca de 300 famílias na tentativa de obter para si a dignidade deste universo, desse cosmo. Ou ainda como diria o filósofo: um cosmos em toda a acepção do termo, foi violentamente rechaçado, o estado e a sua máquina mortífera, chamada polícia, agiu de pronto para não permitir aos que não são nobres, a poética do espaço!

            Me sirvo aqui desta conversação com Bachelard, para falar de um tipo de casa muito particular, da nossa morada original, o local mais protegido: o útero. Foi com o meu útero que senti a dor de Eutália Barbosa, ao ver seu filho apanhando do estado. Este mesmo que deveria nos proteger! Para ele, seu primeiro vínculo no universo da casa. Ato contínuo o filho na tentativa de proteger a mãe, a sua morada metafórica, apanha e segue algemado, sujo de barro! Deste mesmo barro que buscou conquistar para outros, ele mesmo tem casa. Ele, que tem a casa como direito universal, como um princípio de moradia, de lugar no mundo. Que sabe a importância da solidariedade para construir uma sociedade justa. Apanhou, foi exposto na carroceria de um carro de polícia! Seu irmão assistia a tudo tomado pelo desespero. Na tentativa de resolver foi acusado de desacato! Foi também levado. Agindo assim todas as pessoas com vínculos institucionais fortes e relações com aqueles que poderiam agir em defesa das famílias sem teto foram retirados do cenário.

            A vizinhança assistia a tudo indiferente ou revoltada pela presença dos indesejáveis entre eles. Quem são essas pessoas e seus filhos? Quem são esses impróprios para o convívio? A polícia por motivação também imobiliária ostentava o seu aparato bélico. E a casa ficava cada vez mais distante. Escapava como de resto tudo, para as pessoas que tem pouco ou quase nada. Contudo, não faltou companheirismo, vontade, coletividade para aqueles que estavam de pé as três horas da manhã, antecipando o dia, capinando os prováveis lotes, afagando o sonho da casa própria. Pensando como Manoel de Barros: “Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:/Que o esplendor da manhã não se abre com faca”.

            A abordagem abriu um buraco em mim, que assisti a tudo sem nada poder fazer, eu mesma que não tenho casa! Eu mesma que me sinto não pertencer! Não habitar! Agora não consigo esquecer a Carolina Maria de Jesus e o seu Quarto de Despejo, em que dizia: O maior espetáculo do pobre da atualidade é comer.

Juliete Oliveira – sem teto
Palmas/TO, 16 de setembro de 2019

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Once upon a time



Era uma vez um país do absurdo, onde era proibido ser bom, cultivar a beleza, a filosofia e tudo que ela produziu enquanto investigação do pensamento foi banido deste país, a palavra diversidade foi excluída dos dicionários, na escola os alunos passaram a vigiar os professores para que não incorressem no crime de usar a arte como ferramenta de ensino, os príncipes e princesas, mesmo os de mais tenra idade, podiam portar a sua arma contra os professores, que passaram a ser uma casta inferior, acuada, incapaz de se organizar, se movimentar e refém de pais e governantes arrogantes e incautos. 

Este país de recursos biológicos abundantes e com um passado de construção de meios legais para proteger o seu acervo, passou a disponibilizar as suas riquezas, comercializando-as por preços irrisórios e tornando a população cada vez mais sem recursos, a escola, motor da construção do pensamento passou a ser o principal alvo dos governantes, em todas as esferas, do vereador ao presidente da república todos estavam ressentidos com esta instituição. Mas não apenas com ela, sobretudo com aqueles que ousaram em tempos anteriores torná-la democrática, como alguns educadores, os quais — não se ousa pronunciar os nomes — tiveram a desfaçatez de achar que o conhecimento seria capaz de tornar as pessoas mais cuidadosas, críticas, que poderiam ter percepção para transformar a realidade. Este foram definitivamente banidos da história daquele povo.

O país despencou de uma categoria vantajosa, auferida a ele pelas suas condições econômicas resultado do que poderia oferecer ao mundo em matéria de recursos naturais e produção agropecuária, petrolífera, engenharia aeronáutica e tantas outras áreas da produção e do conhecimento. Nos dias que correm os outros países mudam de calçada para não caminharem lado a lado com ele, os bons, os belos, belas, boas, felizes, ou estão escondidos em pequenos contêineres blindados por uma aparência austera, amedrontados, temerosos pelas suas vidas, ou estão buscando meios de irem para outras paisagens, com outras estações, para que possam compor canções de exílio. Nesta nação agora só há espaço para formigas, as cigarras se foram, ou não cantam mais, buscaram disfarces, se transvestindo de outras coisas que não denunciem a sua personalidade desnecessária.

No país do rosa e do azul, não é seguro mais o arco-íris, o baile de são benedito, a produção sem veneno, o riso, a loucura terá que ser encarcerada novamente, posta em vigilância sem sublimação, o alienista está vigiando, aquele formado na escola do medo, na pedagogia do ódio, pedagogia da dependência, aquele cujo filho e filha estudam na escola da proibição, este doutor será a voz de ameaça para os que se ousarem loucos. Como tudo está velho, ultrapassado, o país e seu povo não serão mais considerados como algo relevantes, só o seu território é do interesse dos outros países, que deverão tomar posse do que há de revelante para o mercado e aos poucos torná-los meros manequins de um passado carnavalesco.  

Juliete Oliveira
Palmas-TO, 07 de de fevereiro de 2019
Imagem: Escola de Circo de Recife

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

a cova não contém



não contém o meu espírito de acender raios
não contém meus braços de árvore
não contém minha semelhança de nuvem
não contém meus delírios de parturiente
não contém minha insistência de semente
não contém a minha pele escura
não contém minha vulva
não contém minha sabedoria de relâmpago
não contém minha serpente impaciente
não contém minha verdade de terra
não contém língua & desejo
não contém meu canto de outro tempo
não contém promessas de ouro
não contém o desconhecido vindouro
não contém a consciência do instante livre
não contém meus olhos de aurora
não contém o que sei & o que não sei
não contém o que escuto do vento
não contém meu grito de sangue antigo
não contém espectros da noite
não contém os segredos dos cantos que entoei
não contém o ontem & o agora
não contém a bravura cerrada em meus dentes
não contem o escuro do meu lamento
não contém o testemunho arenoso do que sou
não contém a ladainha em sétima solidão
não contem a renúncia escrita em idiomas imortais
não contém as festas & os desafios dos meus passos
não contém uma colheita de devires
não contém a aridez de campo sem flores
não contém foice & martelo
não contém a garganta & seu grito
não contém pés descalços no orvalho da liberdade
não contém o corpo e sua mortalidade
não contém as silabas da justiça
não contém o suor da lavoura
não contém o sulco no solo
não contém a morte & seu deposito
não contém todas as cores & sua cronologia
não contém querer & igualdade
não contém o justo & seu olhar infinitesimal
não contém a pele & suas planícies
não contém nos matar.
não contém, não contém, não contém.

Juliete Oliveira
Palmas-TO, janeiro de 2019
Imagem: Sebastião Salgado