sexta-feira, 13 de abril de 2012

Da educação mercadoria à certificação vazia



Enquanto não houver uma mudança radical, o próprio sentido de educação estará comprometido, posto que seu fim mais elementar não é atingido: em vez de promover a emancipação humana, produz lucro para o capital que só enxerga as camadas sociais C, D e E quando estas se apresentam como potencial mercado consumidor.

O ensino superior, público e privado, no Brasil passou por grandes transformações nas últimas décadas. Essas mudanças – travestidas de democratização, por favorecerem o acesso – visaram atender a uma proposta de privatização e barateamento da educação.
O Ministério da Educação (MEC) alardeia números, sobretudo para organismos internacionais – que obrigam o país a se enquadrar em padrões estipulados por eles na competição do mercado de consumo, trabalho e pesquisa –, que demonstram o crescimento do acesso ao ensino superior, ainda que distantes daqueles objetivados pelo Plano Nacional de Educação (PNE) (o acesso é de apenas 13,8% dos jovens, entre 18 e 24 anos). Porém, esse suposto processo de inclusão tem facilitado, para além do aceitável, um crescimento vertiginoso das instituições de ensino superior (IES) privadas, com desdobramentos que passam pela precarização do trabalho docente e pela formação duvidosa que essas empresas têm oferecido aos alunos por ela formados.
A predominância de objetivos economicistas em detrimento dos pedagógicos nas IES privadas permitiu um fenômeno relativamente novo no Brasil: a formação de conglomerados educacionais, grandes empresas, de capital aberto e com forte participação de grupos estrangeiros em seu quadro de acionistas. A autorização para funcionamento dessa espécie de oligopólio do setor educacional tem intensificado a visão mercantil da educação superior no Brasil. Os exemplos mais representativos desse modelo de organização empresarial na educação ficam por conta dos grupos educacionais Kroton-Pitágoras, Estácio de Sá, SEB (Sistema Educacional Brasileiro) e Anhanguera Educacional. Esta última, com a recente aquisição da Uniban, passou a ser o maior grupo educacional do país, atendendo aproximadamente 400 mil alunos em campi espalhados por diversos estados brasileiros. Além disso, manteve sua projeção de crescimento de atingir 1 milhão de estudantes em cinco anos, segundo matéria do Valor Econômico de 17 de novembro de 2011.
A alteração no padrão de financiamento das IES privadas promoveu uma mudança significativa no modelo de gestão: o papel que antes era predominantemente exercido por mantenedoras, de caráter familiar ou religioso, hoje passou a ser de responsabilidade de bancos ou fundos de investimentos que contratam executivos como seus representantes, padronizam procedimentos de relações de trabalho nos departamentos de recursos humanos e prestam contas ao fundo de ações. Decorre daí um perfil de gestão alinhavado com a lógica empresarial, sob responsabilidade de executivos, e muito distante dos objetivos educacionais que sempre foram sustentados por professores e pesquisadores.
Abandono do Estado
Tomado pela óptica do lucro, o setor educacional privado tem se valido, oportunamente, do abandono do Estado na oferta de vagas públicas para a formação superior. Dessa forma, as IES privadas, cuja existência deveria ter um caráter complementar, acabaram predominando e se consolidando em grupos que formulam e ditam as regras de seu interesse para a (des)regulamentação do setor, regras essas beneficiadas pelas chamadas políticas de parcerias público-privadas, as quais são alicerçadas sobre o princípio da transferência de dinheiro público para a iniciativa privada com a finalidade de que esta última cumpra o papel que o Estado se nega a exercer. No caso do ensino superior, essas transferências se dão predominantemente por meio do Programa Universidade para Todos (ProUni) e do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), além dos programas de benefícios de isenção fiscal oferecidos pelo BNDES. Nesse ponto, o discurso falacioso do Estado e o do setor privado convergem: trata-se de iniciativas e proposições que manifestam concretamente a preocupação com a formação do brasileiro e com o desenvolvimento do país!
De modo geral, a consolidação da mercantilização da educação e a formação de oligopólios educacionais têm ocorrido com base na incorporação de princípios e fundamentos do setor empresarial, ou seja, na otimização dos recursos. Como afirma Marilena Chauí (2001), “a Universidade está estruturada segundo o modelo organizacional da grande empresa, isto é, tem o rendimento como fim, a burocracia como meio e as leis do mercado como condição”. Essa fórmula – clássica do neoliberalismo – consiste na diminuição das despesas para o consequente aumento dos lucros. Assim, com vistas a assegurar um perfil rentável − à empresa, é claro −, torna-se necessária a precarização das relações de trabalho: redução de salários, perda de direitos, ameaças e cobranças pelo desempenho da instituição nas avaliações externas promovidas pelo MEC são alguns traços da rotina de professores das IES privadas.
Ao mesmo tempo, concorre para intensificar os contornos dramáticos desse quadro a expansão da modalidade EaD (educação a distância), que em 2010 fechou o ano com 973 mil alunos matriculados, o que corresponde a 30% de todos os universitários em instituições privadas. Nesse caso, a educação mediada pela tecnologia, que deveria servir para aproximar os extremos sociais, acaba por aprofundá-los. Contudo, para os empresários, o aliciamento desse recurso é tomado como mais uma vantagem mercadológica capitalista, sobretudo por potencializar sua capacidade de lucro.
Na outra ponta, os salários praticados nas IES privadas são – via de regra – aviltantes, o que obriga muitos profissionais a lecionar em várias instituições, seja para compor a renda, seja para se prevenir das demissões, muitas vezes arbitrárias. Nesse contexto, os professores se veem impedidos de desempenhar tarefas diretamente ligadas à sua função (e ao ensino superior, ou seja, ensino, pesquisa e extensão), absorvidos que estão por uma jornada de trabalho extenuante. No entanto, paralelamente a isso, ocorre um processo silencioso de captura da subjetividade dos docentes com objetivo de estabelecer uma competição interna, cuja face mais alarmante é a perda da autonomia. Como toda competição tem exigências, impõe-se que esses profissionais – para terem condição de competir – sejam aguerridos, “pró-ativos”, competentes e indiferentes às questões coletivas, o que os leva a um distanciamento de seus sindicatos e associações e permite, muitas vezes, que sejam – deliberadamente – vistos como mão de obra manipulável pelos patrões.
Precarização e intimidação
Se de um lado temos a perda da autonomia dos professores como uma ameaça à própria noção de função docente, de outro notamos que, por parte dos empresários da educação, a oferta de uma formação aligeirada tem exigido profissionais cada vez menos críticos e progressivamente mais alienados da prática educativa. Não é raro o relato de professores do ensino superior que têm seus conteúdos – planos e ementas de cursos –, bem como suas avaliações, elaborados por um terceiro que nunca sequer esteve em uma sala de aula. Essa tentativa, por parte dos patrões, de padronizar a prática pedagógica para garantir um rendimento mínimo nas avaliações externas evidencia de maneira cabal seu propósito de controle absoluto sobre a mercadoria que vendem.
Dessa forma, a reação e a resistência a essa prática de mercantilização da educação impõem grandes desafios. No estado de São Paulo, que acompanhamos mais de perto, tem sido cada vez mais difícil o enfrentamento com os patrões do ensino superior nas campanhas salariais organizadas por nossa federação, a Fepesp (Federação dos Profissionais de Educação do Estado de São Paulo), pois há um evidente conflito nas pautas apresentadas para negociação. Do lado de lá, a ofensiva é para subtrair direitos historicamente conquistados e que, vistos com a luneta do capital, representam entraves normativos à expansão dos lucros. Em razão disso, questões como plano de carreira, regulamentação da EaD e aumento real são deliberadamente ignoradas pelos patrões, que, por sua vez, promovem lobbiesjunto ao Poder Legislativo, a fim de que as regras do setor continuem a beneficiá-los.
Entretanto, a predominância de valores empresariais na organização das IES e a falta de regulamentação efetiva por parte do MEC têm imposto uma permanente ameaça, ainda que velada, que é o desemprego. Assim, os professores insatisfeitos com salários e condições de trabalho incorporam a responsabilidade incutida pelo patrão, de que o mercado funciona assim: os insatisfeitos que se mudem. A aceitação dessa ideia leva a um comportamento defensivo, porque nos faz crer que nada pode ser feito e, por isso mesmo, qualquer iniciativa coletiva deve ser vista como prejuízo ao próprio trabalhador.
Há também que se ressaltar a necessidade urgente de que o debate sobre a educação seja tomado como fundamento para um crescimento qualitativo e efetivo do Brasil, sobretudo para a população que ainda anseia conhecer na prática a longo prazo esse crescimento. Para validarmos o princípio democrático do direito à educação, sem, contudo, ignorar que o mercado do ensino privado não arrefecerá a curto prazo, precisamos assegurar o investimento de 10% do PIB na educação pública – que estimamos universal e de qualidade –, a fim de que ela seja o referencial para o setor privado, e não o contrário.
Enquanto não houver uma mudança radical nesse quadro, o próprio sentido de educação estará comprometido, posto que seu fim mais elementar não é atingido: em vez de promover a emancipação humana, produz lucro para o capital que só enxerga as camadas sociais C, D e E quando estas se apresentam como potencial mercado consumidor.
A forte presença do controle corporativo em um setor essencial como a educação provoca sérias fissuras na malha social, na medida em que os desdobramentos da transferência tácita da responsabilidade do Estado para a iniciativa privada têm autorizado o funcionamento de fábricas de diplomas com certificação vazia, para uma população que, embriagada pela democratização do acesso, ainda não se sabe enganada.

* Andrea Harada Souza é Professora de literatura, presidente do Sinpro Guarulhos e membro da coordenação estadal da CSP-Conlutas.
** Publicado originalmente no site Le Monde Diplomatique.
(Le Monde Diplomatique)
Imagem: Gordon Matta Clark

sexta-feira, 6 de abril de 2012

De queijo, impunidade e outros odores sujos da lei
por Juliete Oliveira

Tribunais podem cheirar a queijo, instalados numa venda do Mississippi rural numa história contada por William Faulkner. Outros podem exalar odores menos palatáveis, ainda que sediados numa corte suntuosa e com localização nobre numa capital federal. O mau cheiro da sentença – a um só tempo técnica e política, ética e jurídica da ministra do Superior Tribunal de Justiça Maria Thereza de Assis Moura contra vítimas de estrupo. Três meninas de 12 anos. O mau cheiro e a vergonha assinalam o horizonte extenso dessa questão. Os desastres que expõem. Quem estará resguardado no ambiente refinado dos tribunais, se aí se fabricam histórias a partir de realidades falsas, alucinadas, para lá de ficcionais? Prostitutas, meninas ou adultas, desde então com culpa permanente no cartório, a se validar o senso comum e o preconceito das ruas na interpretação de uma corte de justiça. Tal seria a condição da prostituta, a culpa? Prostituta, no Brasil, não teria defesa? Seria este o crime preferencial, verdadeiro? Ou bem ao contrário do que supõe a ministra, sua alegação se fundamentaria numa visada arcaica, muito antiga mesmo, constituída por uma instância de autoridade contra outro que sequer tem o corpo para se defender? Até mesmo o Estado patriárquico pode sentir aí o cheiro nauseabundo do preconceito e da impunidade. A determinação da ministra, ou seria mais correto dizer, seu discurso, incorpora a cifragem da censura e do recalcamento meramente moralista e retrocede a uma sociedade em que as desigualdades prosperam, sobretudo porque as vítimas “tomam o lugar” do réu nos tribunais. Com efeito, um parecer de “justiça” que vê em meninas prostituídas tamanha periculosidade – “as vítimas, à época dos fatos, lamentavelmente, já estavam longe de serem inocentes, ingênuas, inconscientes e desinformadas a respeito do sexo”, não corresponde a nenhuma das “mudanças sociais” operadas na sociedade brasileira, antes, ao retrocesso das mutações, às viragens próprias do poder. Ou ainda mais, remete a uma autoridade publicamente reconhecida que diverge da obtenção legal e consensual de que a infância deve ser protegida, sobretudo da exploração sexual e suas variantes. Uma vez que meninas não vêm ao mundo para ser prostitutas. São crianças, e se tão logo estão “longe de serem inocentes”, esse é um desiquilíbrio que cabe à sociedade e à justiça restabelecerem. Que meninas de 12 anos possam ser consideradas nocivas por conta da experiência dramática em que vivem, podendo inclusive ser penalizadas pela vulnerabilidade da sua inocência, torna irredutível o desenrolar de uma sessão na corte e do seu registro escabroso: uma juíza do Supremo Tribunal de Justiça conflituar os termos experiência (“conhecimento”) e inocência (“ser não nocivo”) em defesa de um estuprador, libidinoso e patético. Por que Faulkner teria instalado uma sessão da corte numa venda de arrabalde? Talvez porque os produtos ali expostos, todos de baixa qualidade e possivelmente fora do prazo de validade, se equiparam aos pronunciamentos e decisões tomadas – “chegando em intermitentes lufadas, momentâneas, breves, por entre o outro cheiro, constante, o cheiro e o senso, de medo...” Crianças que desde tenra idade se vendem por alguns trocados nas ruas das cidades Brasil afora, atravessam enfileiradas de uma ponta à outra na imagem desolada destas três meninas que, ao que parece, ao que tudo indica, foram vendidas agora, sob o abrigo da lei e da justiça, uma vez mais.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

O que aprendi com as nuvens

                                                                                         Para o VII Fórum Brasileiro de Educação Ambiental


Ao sobrevoar Salvador numa aeronave pequena advinda do sertão pernambucano, tive dois insights, o primeiro: as cidades, quando vistas do alto, por maiores que sejam se constituem de pequenos pontos, quase que como pontinhos que alteram a continuidade da paisagem da terra. O segundo: o parcelamento do solo pode ser razoavelmente compreendido quando se tem em mente essa perspectiva da geografia lá em baixo. 

Mas o que se sabe mesmo com extrema clareza, é que essa partilha obedece a fatores outros que não se filiam única e exclusivamente à alternativa locacional justa, para quase todos os ambientes. Jean Baudrillard em seu “simulacros e simulações” versa sobre a distribuição aérea dos hipermercados: Há que ver como centraliza e redistribui toda uma região e uma população, como concentra e racionaliza horários e percursos, práticas – criando um imenso movimento vaivém. Contudo, ele vai mais além, denuncia que os abjetos expostos nesses ambientes não são mais mercadorias e sim testes, que nos interrogam e somos intimados a responder e que a resposta está incluída na pergunta. Uma mensagem dos media.


O que me levava a Salvador buscava discutir também esses pontos, talvez por isso a percepção das nuvens envolvessem tais aspectos. O VII Fórum Brasileiro de Educação Ambiental se constituiria num espaço “livre” para fazer voar o pensamento. Muito mais do que as condições climáticas, bióticas, hídricas do ambiente lá esteve em discussão o sujeito, como uma instância não evidente a se restabelecer: não basta pensar para ser, como proclamou Descartes, já que inúmeras outras maneiras de existir se instauram fora da consciência, ao passo que o sujeito advém no momento em que o pensamento se obstisna em apreender a si mesmo e se põe a girar como um peão enlouquecido, sem enganchar em nada dos territórios reais da existência, os quais por sua vez derivam uns em relação aos outros, como placas tectônicas sob a superfície dos continentes.


Descobrimos no Fórum a necessidade de qualificar a nossa participação nos processos decisórios, e que devemos enxergar o projeto de desenvolvimento ao qual o Brasil se atrela e que isso faz parte de um projeto mundial que não leva em consideração subjetividades e singularidades comunitárias, uma recusa que nos adoece imensamente. “Trata-se, na verdade, de fazer que intervenham saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados (pelo olhar estrangeiro). Contra a instância teórica unitária que pretende filtrá-las, hierarquizá-las, ordená-las em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns.” Salienta Michel Foucault.


Estando ali e aprendendo uns com os outros fomos além: o saber empossando a vida toda, em um curso apaixonado e imprevisível próprios dos saberes que não são amarrados por convenções e estão dispostos como uma xícara de café oferecida ao amigo em um dia qualquer.


Juliete Oliveira

Salgueiro-PE, 02 de abril de 2012.