segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Dentro da noite sem cor

DENTRO DA NOITE SEM COR


Patchwork livro para teatro de André Queiroz (Multifoco, 2011) é como o título quer: uma mixórdia, contudo tem o cheiro ocre das velas acessas em uma cerimônia fúnebre; todos os recortes escolhidos por Queiroz levam inevitavelmente à morte  perdidos & abismados fragmentos/emissários alados da morte (Ney Ferraz Paiva). Relaciono-me com a escrita desse autor há pelo menos doze anos, tomando parte muitas vezes da cozinha dele, dos bastidores de sua biblioteca, das conversas, vendo-o para além do distendimento que a escrita produz.
Certa vez ao ler um de seus romances tive reações cardíacas que não me agradaram, e me afastei por um tempo da sua produção ficcional; detive-me aos ensaios. Encaro agora quase como um atrevimento escrever sobre este livro, do qual ouvi falar muito antes de publicado, para encontrar outras bifurcações para o título, gosto de chamar de nome, penso que personifica a obra; e dessa vez tive de consultar a tradução, uma vez que inevitavelmente me remetia aos interessantes panos de prato que minha mãe confecciona. E foi com grata surpresa que percebi que André também teve esse delicado olhar sobre o cotidiano, o doméstico, o que está dentro, o que im-porta (em atenção à raiz da palavra importância).

te escrevo hoje porque fiquei sabendo que estás por estes lados. Recolheram a ti como a mim. Ironia do destino este quase encontro de que padecemos! Como estás? Soube que Ângela ainda te habita a alma?”

No jogo do tarô a carta XIII, a Morte, é a que mais provoca receios aos consulentes, mas de acordo com os textos antigos sobre a arte da adivinhação, a morte se tornou o símbolo que evidencia a inutilidade de toda a riqueza, poder ou vaidade. Por isso, esta carta simboliza a transformação que destrói as coisas para que possam ser reconstruídas depois. É uma transformação inevitável ou mesmo um rejuvenescimento. Em Patchwork a morte se dá muitas vezes como uma lembrança embotada do que não se viveu, do que por muito se esperou, ou como um devir, muito próximo a quem se consegue inclusive sentir o cheiro, como é o caso de O grito na suspensão da morte, em que um já espectro se coloca diante de soldados em um – não muito claro – campo de extermínio. E dali, daquela posição pouco confortável se põe como um vidente a imaginar as ínfimas possibilidades de vacilo do atirador, quando tem absoluta certeza que não existe nenhuma chance para outro desenlace.

O livro é para o teatro, mas poderia ser para tocar no rádio, ouvir em praça pública, em movimento e dança, essa cartografia de memórias recapituladas, sem algum apelo paisagístico, como bem disse Deleuze: No Ocidente a árvore plantou-se nos corpos, ela endureceu e estratificou até os sexos. Corpo-livro não estratificado no qual tudo se possibilita em tantas e tamanhas direções, fluxos, pensamentos. Daí o transcurso de Queiroz ir além da filosofia: Se eu fosse mulher cada poema de Álvaro de Campos seria um alarde para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais. Assim tudo acaba em silêncio e poesia. Fernando Pessoa.

O mundo tornou-se caótico, mas o livro permanece sendo a imagem do mundo  sábia organização maquínica do pensamento. Quantos mundos cabem em Patchwork? Cabem o mundo da razão e des-razão, da vida e da morte, da tristeza e da alegria, da amizade e da rivalidade. Um dos homens mais sábios que existiu, disse que “a certeza da morte poderia adoçar cada vida com uma gota perfumada de leveza...” Friedrich Nietzsche. Queiroz trata a morte com a urgência cadente de quem nasce: ... as pernas o caminho, tem sede os olhos saltam para fora, quais os que vejo nessa aflição da hora empanturrada na morte de cá, senão os dela, a outra na descostura da pele – de dentro pra fora, o lance da vida em força, os olhos saltitantes em festa, são distantes os olhos no tempo a se fazer, será que duro este remendo. (“A criança breve”).

“- A gente não vai para o céu. É o oposto: o céu é que nos entra, pulmões adentro. A pessoa morre é engasgada em nuvem.” Mia Couto. A morte sempre rende e renderá boas histórias; nosso escritor não é imune a essa compreensão, sempre tocando as extremidades da vida com enorme delicadeza, com o sentido de que coisas frágeis demais podem ser rompidas, dependendo de como inclusive são olhadas. A literatura a que Queiroz se entrega em Patchwork tem um suave cheiro de morte como um bosque de eucaliptos após a chuva de verão. Não é uma leitura que de início fascine pela trama elaborada, depende de certo esforço, é um corredor apertado e pouco confortável que oferece ao principiante certa dificuldade, tem um ritmo próximo do rock & roll, uma batida psicodélica e imagética; posso estar falando de algo distante, estranho ao texto, mas compreendo que a literatura tem esse poder de reverberar de maneira diversa por cada ouvido.

Juliete oliveira
Imagem: Giovanni Segantini
Salgueiro-PE, 02 de abril de 2012