terça-feira, 27 de dezembro de 2011

AQUELE RIO SEM PLUMAS

[Minha família não era rica], era uma família tradicional. Não tive infância luxuosa. Aqueles luxos que certos escritores atribuem ao engenho devem ter sido no princípio da Colônia. Nenhum dos engenhos de meu pai tinha luz elétrica, de modo que, quando começava a escurecer, as empregadas punham todos os candeeiros sobre a mesa, iam acendendo um por um e levando para diferentes cantos para pendurar. Eu fiquei no engenho do Poço do Aleixo antes de me alfabetizar. Então meu pai foi morar no Recife, e nós tínhamos uma professora, a dona Natália, para mim e meu irmão. Depois que nós estávamos suficientemente alfabetizados, entramos para o Colégio Marista. A gente passou a ir ao engenho apenas nas férias. Nessa época, os empregados compravam os folhetos e levavam para eu ler. Eu ficava sentado num carro de boi velho e todos ficavam em volta, sentados no chão, ouvindo.

João Cabral de Melo Neto


João Cabral sai de uma esfera familiar tradiconal de Pernambuco, uma esfera pacata, empobrecida, sem ligações com as classes dominantes do estado e do Nordeste. Menino de engenho como quase todos os demais, daí atravessa para o mundo da escrita e da leitura. Penso mesmo que João Cabral teve entre os poetas modernos um dos mais intensos relacionamentos com a leitura, a grande leitura - tentar achar os grandes autores, ao passo que escrevia a grande poesia de que foi capaz. Autor não por acaso de um dos mais fascinantes poemas escrito em nossa língua, "O cão sem plumas". A que todos devíamos amar e conhecer. Políticos, professores, alunos, educadores ambiental, engenheiros de todas as marcas e utilidades, garis, lavadeiras, jornalistas, médicos, jogadores de futebol, amantes, aventureiros, namorados, porteiros, policiais, motoristas, empregadas doméstica. Um teste de selação a qualquer coisa, emprego, por exemplo, era saber de cor um trecho do poema. Ter a rua João Cabral de Melo Neto bem na beira do imponente rio da cidade. E no sertão, a rua da praça principal, onde se escutaria nas missas o poema reunir o povo. "O cão sem plumas" é o Nordeste com uma das menores expectativas de vida do mundo, 27 anos. Menos ainda que a Índia, Bangladesh, Haiti. É esse o dado inaugural do poema escrito em Barcelona em 1950. O estômago sem vida do Nordeste. É a esse Nordeste que João Cabral retorna quase que num tratado social. Um Nordeste que o impressiona porque está dentro dele desde sempre, nunca apartado pelos outros temas - para que não perdesse tudo ao desprender-se do que já possuía. Grande lição de coisa aos nordestinos. Lufadas de vento morno, ardente. Tantas são as coisas definitivamente nossas das que não se pode abrir mão, presas e atadas ao corpo, tatuadas na memória. A cidade, o caminho, o rio...

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.
 
Ney Ferraz Paiva & Juliete Oliveira
imagem: Maryana Carvalho, Rio São Francisco, Cabrobó-PE

terça-feira, 6 de dezembro de 2011


De qualquer maneira, o poder é um engodo, a verdade é um engodo. Tudo está no atalho fulgurante onde se encerra um ciclo inteiro de acumulação, ou um ciclo de poder, ou um ciclo de verdade. Nunca de inversão, nem de subversão: o ciclo deve se completar. Mas pode completar-se instantaneamente. É a morte que está em jogo neste atalho.
Jean Baudrillard

Por quem os sinos dobram? Por quem chora Fafá de Belém? Ninguém acredite que se trate de um testemunho pungente que não diferencie e até mesmo estigmatize os habitantes do sul do Pará e futuro estado do Carajás. Quando Donne escreveu “Meditações”, colocou a sua verve a serviço da indignação de ver irmãos massacrar irmãos. Foi um lamento a que o mundo se referiu a partir de então pela potência do relato. Quando Fafá de Belém chora o que está em jogo é a imprevisível partilha de poder, jamais outra coisa, que sempre se deu no território paraense; e ela o faz munida da mesma mesquinharia característica daqueles aos quais sempre interessou manter a condição feudal do estado e que de imediato resulta no abandono das regiões que pelteiam a divisão.

Nenhuma eficácia há no choro da nobre senhora, por conseguinte ele perpetua-nos a um histórico em que milhares de pessoas mantêm-se desprovidas de dignidade e, portanto desse choro não poderá resultar sequer os afagos midiáticos e publicitários estimados pelos marqueteiros de plantão. Se escorresse uma lágrima sequer de reivindicação em seus gemidos, outra não seria a da integração, da manutenção do poder e dos privilégios de uma política de exclusão. Não se trata de outorgar uma partilha, é claro, isso arruinaria o sistema estabelecido, que repousa, como se sabe, na superexploração de todos, seja de que quadrante for. Daí que Fafá, como Jesus (este por outros motivos), chorou. Certamente que os sinos da basílica de Nazaré, não dobram, nem nunca dobraram pela população do sul e sudeste do Pará e que Fafá de Belém não chorou pelas vidas que são desperdiçadas, amesquinhadas nessa região pela mais absoluta ausência de atuação política. Região a que já se chamou de “almoxarifado do estado”. Um estado que se faz representar apenas para receber no fim do mês os seus honorários, ainda que sempre falte: saúde, educação, segurança pública, estradas, moradia, condições de vida, justiça, enfim. Não percamos tempo com litanias estéreis ou mimetismos nauseabundos.

Dividir o território talvez seja a única objetividade fluente em defesa das populações de todo o Pará, a se possibilitar aos dois extremos a estrutura social, os equipamentos e serviços a que se pode ansiar e pretender. Já que há décadas, que em nome de uma suposta manutenção do território, vem se asfixiando a quase totalidade deste. Todos sabem, e não é preciso acrescentar o “fantasma” dos dados disto que significa manter atrelado ao estado estas terras – sabe-se que vale muito aos parlamentares sediados em Belém, sobretudo pela impressionante “reserva” eleitoral, os eleitores expostos nas mesas de negociação; os milhares de hectares a se repartir entre os pares e ainda os recursos naturais (leia-se recurso como unidade monetária, moeda de troca) em condições de preservação que poderão garantir ao Pará a manutenção de seu posto como unidade representativa da Amazônia, um dos maiores invernistas de boi (Vida de gado!).

Significa sobretudo a manutenção de um estado de exceção, pela ineficácia, incompetência e descaso do poder público, da fome, da violência e da morte, já que sabemos que um território nunca é homogêneo e desde já ultrapassado na mais segura fronteira, e que por ele transitam e se deixam ficar cada vez mais populações subjugadas; uns tantos que adquiriram uma oscilante independência econômica, mas sempre minoritária, a arruinar os mais próximos; outros, bem poucos, que se organizam e se revoltam e intentam conquistar a soberania, a justiça, um tanto da alegria de viver, simplesmente... Onde as velhas e emperradas oligarquias cessem (inclusive seu choro e lamento) e se possa começar a começar...


Juliete Oliveira