sábado, 20 de agosto de 2016

Democracia emparedada

                                                          heyshambles.tumblr.com



Com quem anda a democracia? Quem são os seus fiéis detentores? Em que solo pisa a senhora democracia? Não mexe comigo, que eu não ando só, / Eu não ando só, que eu não ando só. / Não mexe não! (Maria Bethânia). O trecho da bela canção de Bethânia nos fala das boas companhias de quem não anda só, durante muito tempo a palavra democracia foi um xingamento por caraterística de origem, em que, nem todos, estavam abrigados no seu guarda-chuva. O famoso discurso de Péricles que sugeriu pela primeira vez ser a democracia o governo “do povo, pelo povo e para o povo”, o que poderia ser traduzida por: a distribuição equitativa do poder de tomar decisões coletivas e o julgamento dos cidadãos quanto ao processo de tomada dessas decisões e os seus resultados. A democracia nunca esteve só!

É por aí que anda a democracia? Nos tempos que correm, ela se transformou por herança de décadas anteriores, em uma espécie de objeto colonizado do discurso individualista. “Os códigos fundamentais de uma cultura — aqueles que regem sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a hierarquia de suas práticas — fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar. ” (Michel Foucault – As Palavras e as Coisas). É democrático ter acesso a bens de consumo, é democrático ter um comportamento fora dos padrões, é democrático criticar esquemas que oferecem direito a políticas públicas, ou ainda, a própria existência destas, como viés de acesso para grupos antes negligenciados. É democrático, não ser democrático. Ainda com Foucault, a relação da palavra com o signo é uma relação infinita. Não que a palavra seja imperfeita e esteja, em face da representação, num deficit que em vão se esforçaria por recuperar. Só que o signo, foi por assim dizer, capturado pela experiência do “real” em que segundo Jacques Rancière, a democracia não representaria mais liberdade e igualdade junto as instituições de estado, mas seria encarnada nas próprias formas de vida material e de experiência sensível.

Ora pois, se o signo que antes era a mais alta representação de abrangência e isonomia, não sem antes passar por intermináveis testes de adaptação cultural, e ser, ele mesmo, responsável por derivar e sustentar mudanças “culturais”, passa a ser uma mera referência a preferências e gostos individuais, há algo de muito doentio em todo o resto. O que se observa, é o esvaziamento literal do que quer, de fato expressar a palavra democracia, se avizinhando da conveniência, das influências, das paixões, oferecendo margem para energias febris que se ativam na cena política, desviando-a para a busca da prosperidade material, da felicidade privada e para os laços societários, já conhecida de Aristóteles a partir de Lisístrata em a “A greve do sexo” de Aristófanes, que busca neutralizar as formas de interação social mais afeitas à efetivação do estado democrático de direito. Essa verdadeira promoção do que é privado e individual, promovida pela mídia, sobretudo, tem o efeito devastador de tornar os cidadãos indiferentes ao bem público e minar a autoridade de governos, desviando as atenções do poder instituído paras responder demandas reiteradas que emanam da sociedade.

Em O ódio à democracia Jacques Rancière explicita o paradoxo democrático tido por alguns especialistas como “o reino dos excessos”, que leva a ruína o governo democrático. Opa! Não é, a algo assim que estamos assistindo? Uma enorme quantidade de garantias para individualidades – sobretudo, para aqueles que se setem aptos a pagar por qualquer coisa –, em que, tudo absolutamente tudo, é colocado à serviço de garantir direitos, a quem já tem todo direito. Ainda há pouco, uma das maiores iniciativas da sociedade, na tentativa de frear um pouco, a insaciável sede de poder de determinados grupos políticos: a “Lei da Ficha Limpa”, foi classificada por um dos maiores jurista brasileiro, como o resultado do trabalho de bêbados.

Lembro muito bem, de toda a energia empenhada pela sociedade organizada para reunir assinaturas que levassem o Projeto de Lei a ser votado nas instâncias necessárias a sua legalização, não foram poucas campanhas publicitárias, na mídia alternativa, para arregimentar cerca de 1,4 milhão de assinaturas e patrocinado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), duas instituições que ainda gozam de certo respeito e respaldo para se posicionarem quando é necessário garantir direitos democráticos.

O emparedamento da democracia a coloca como um apetrecho que é portado por políticos de toda monta. De tanto ser usada como referência até mesmo do que ela não representa, se transformou em um espelho que reflete ao contrário, uma similitude mal confeccionada de si mesma. Com voracidade essa democracia é consumida em equivalência, ou afirmação ilimitada de poder material e regurgita ingenuidade ou cinismo para fortalecer os indivíduos democráticos e seus processos de legitimação  


Juliete Oliveira
Palmas/TO, agosto de 2016

segunda-feira, 11 de abril de 2016

"Instituições e políticas determinam se a nação vai fracassar ou não"


Professor da Harvard Kennedy School, aponta as causas dos limites do desenvolvimento brasileiro
por Marcos de Aguiar Villas-Bôas — publicado 11/04/2016 04h25
Aposentados
A Previdência está por ser discutida, enquanto o Bolsa Família é um sucesso
O brasileiro Filipe Campante, professor associado de Políticas Públicas da Harvard Kennedy School, uma das principais escolas de política e administração públicas, negócios e economia, integra um grupo mundial de especialistas dedicados ao estudo das relações entre instituições políticas, inclusão social, democracia e crescimento.
Políticas públicas corretas são fundamentais, mas exigem boas instituições e quanto mais inclusivas forem, melhor sucedido é o país, explica Campante na entrevista a seguir.
CartaCapital: Muitos especialistas, entre eles Daron Acemoglu, do Massachusetts Institute of Technology, e James Robinson, da Universidade de Chicago, defendem que, apesar de boas políticas públicas serem fundamentais, um país precisa, antes de mais nada, ter boas instituições. Qual é a diferença entre instituições e políticas públicas, e que importância tem cada uma delas?
Filipe Campante: Esse ponto de vista é realmente muito influente no debate acadêmico e, cada vez mais, na discussão de políticas públicas. As instituições são o cenário, as regras do jogo que demarcam as políticas públicas e das quais elas emergem. Falamos mais até do que de mudanças nas áreas tributária e da previdência, de reformas como aquela chamada no Brasil de política.
Não se trata, porém, só do ponto de vista de como são eleitos os deputados ou quais os poderes do Congresso e do presidente, qual o sistema partidário, entre outros pontos. Deve-se pensar como tudo isso vai refletir nos incentivos econômicos dados à sociedade, algo que Acemoglu e Robinson ressaltam bastante.
Eles enfatizam a necessidade de ter-se uma proteção ampla ao direito de propriedade. Acho que esse é um exemplo importante no debate brasileiro, por romper um pouco com essa dicotomia de esquerda e direita, onde, de um lado, se protegeria os interesses do capital e do outro, aquele dos oprimidos.
Quando falamos do direito de propriedade, não se trata de proteger as grandes empresas, mas de proteção ampla a toda a população, para permitir que os indivíduos possam se apropriar dos frutos dos seus esforços, dos seus investimentos, do seu trabalho. O conjunto das instituições e das políticas públicas em interação é o que vai determinar se as nações vão fracassar ou não.
Filipe-Campante
A história determina as escolhas sociais, mas há maneiras de mudar a trajetória, diz Campante
CC: Acemoglu e Robinson argumentam também que o passado determina as instituições e políticas do presente, mas é possível remodelá-las no rumo de um futuro melhor. Eles citam exemplos, inclusive do Brasil, em que as formas de relações entre colonizadores e colonizados definiram o que seriam as nações. Aquelas com instituições mais inclusivas, que permitiram a ascensão de um número maior de indivíduos, obtiveram mais sucesso. O senhor concorda com o argumento?
FC: Eu concordo. Existe um debate acadêmico muito intenso sobre até que ponto esse aspecto institucional explica as diferenças entre os países. Isso é algo ainda em aberto e faz parte do meu trabalho acadêmico, mas, de forma geral, me parece bastante persuasiva a ideia de que o ambiente institucional e o grau de inclusão da proteção do direito de propriedade é fundamental para entender o desempenho econômico dos diferentes países.
Essa visão enfatiza fortemente o legado histórico, a ideia que você mencionou de diferentes tipos de colonização terem consequências que persistem ao longo do tempo. Em outras palavras, se o sistema colonial foi implantado de forma a proteger os direitos de propriedade da população como um todo, ou de uma minoria, de uma elite reduzida.
Isso importa, mas não é um destino incontornável. A história condiciona as escolhas sociais disponíveis, contudo há formas de mudar e existem lições importantes aí para o debate político no Brasil.
Herança
A herança do Brasil Colonial e aquela da Declaração da Independência dos EUA condicionaram opções sociais distintas (Foto: Debret e Deagostini)
CC: O Bolsa Família está no centro das discussões políticas e econômicas no Brasil, representa uma política pública inclusiva e centraliza também o debate entre os graus de intervenção do Estado para garantir direitos, algo que o mercado, por si, não permite. Qual é a sua opinião sobre esse assunto?
FC: Há dois aspectos a considerar, na minha opinião. Um deles é o Bolsa Família enquanto política que se propõe a distribuir renda e compor uma rede de proteção social. Acho que há, em larga medida, um consenso entre os especialistas, independentemente dessa caricatura negativa no Brasil, de que é um triunfo de política pública para além do debate de quem o criou. É triste que isso se perca no debate político, ao invés de se reconhecer que esse é um triunfo do Estado Brasileiro.
É um programa meritório, pois atinge os indivíduos que realmente precisam, é relativamente pouco custoso do ponto de vista operacional, gera poucas distorções econômicas e nós, economistas, somos a favor de se distribuir renda concedendo dinheiro de fato, dar a oportunidade de os cidadãos gastarem como bem entenderem. Outro aspecto tem a ver com as implicações institucionais de políticas como o Bolsa Família, ou seja, como a redistribuição de renda afeta a distribuição do poder político.
No Brasil, desde a redemocratização há uma relação entre renda e a participação no poder político a refletir que, quando se distribui renda, se dissemina também a consciência de que alguém informado pode participar mais efetivamente do resultado desse processo.
Por que ninguém questiona hoje o Bolsa Família? Porque não se pode ser contra esse programa e ganhar uma eleição. Isso ilustra uma dinâmica institucional positiva no sentido de olhar o Brasil num prazo longo. Eu acho que há um fortalecimento institucional que anda de mãos dadas com a necessidade de inclusão no nosso País.
CC: O que falta para o Brasil avançar na inclusão? Seria uma democratização em termos de capital humano?
FC: O Brasil tem há séculos uma deficiência em termos de capital humano, mas houve ganhos na área do ensino básico e redução do analfabetismo nos últimos anos, ainda que exista um gargalo gigantesco em relação à qualidade da educação, extremamente baixa, e isso limite a produtividade.
Mas essa é a parte difícil. Até pouco tempo atrás, eu achava que o Brasil tinha se graduado em termos de política econômica, em relação ao combate à hiperinflação e o início do desenvolvimento macroeconômico.
Parecia o momento de se fazer escolhas difíceis, ou seja, onde vamos investir, como investir em capital humano, etc. Infelizmente, voltamos um pouco ao mundo da UTI, de pensar como vai ser feito o trabalho do crescimento econômico, e o capital humano é uma parte fundamental disso, sem dúvida.
Bolsa-Família
O Brasil tem há séculos uma deficiência em termos de capital humano, apesar dos avanços recentes (Foto: Edson Silva/Folhapress)
CC: Há quem diga que o Brasil comemorou em excesso o bom desempenho no início deste século e agora exagera na autocrítica, neste momento de crise.
FC: Houve uma euforia exagerada naquela época e parece que falamos de muito tempo atrás, mas trata-se de três ou quatro anos. Existia um clima de otimismo exacerbado, do “dessa vez é diferente”.
Se agora existe um pessimismo exagerado, é difícil avaliar no calor do momento, mas acho que parte do sentimento negativo de agora vem um pouco da decepção de ter-se deixado levar e de se imaginar como imune a qualquer surpresa.
Sob a ótica do “copo meio cheio, meio vazio”, entretanto, existe agora uma expectativa negativa um tanto exagerada. Parte da reação aos escândalos de corrupção é de um grau de amadurecimento institucional notável.
CC: Haveria no Brasil uma insistência em discutir se o Estado deveria intervir mais ou menos na economia, em vez de se debater quais são os benefícios e custos de cada intervenção?
FC: Num sentido meio trivial, sim. Seria necessário avaliar as intervenções em termos de política e verificar se os benefícios superam os custos, e apenas insistir naquelas que passam nesse teste. É preciso, no entanto, tratar a avaliação daquelas políticas como uma parte essencial desse processo, que ainda não ocorre.
Quando você implanta alguma intervenção, como uma participação do BNDES, qual a avaliação, quais os seus efeitos em detalhes? Quando as escolhas são feitas, com ou sem intervenção, tem-se custos e benefícios. Isso é fundamental, mas perde-se de vista, muitas vezes, no Brasil. Todos são favoráveis à melhora da educação, mas, para isso ocorrer, existirão custos.
Haverá necessidade de mais recursos, eles terão de vir de algum lugar e é isso que não se leva em conta, frequentemente, no debate político no Brasil. Passa-se a crer num mundo mágico onde seria possível viver sem ter de fazer escolhas, e essas são, realmente, decisões muito difíceis. Não há qualquer medida que cause só efeitos positivos.
CC: No Brasil, discute-se a necessidade de uma reforma da previdência e diz-se que direitos dos trabalhadores serão restringidos pelo governo. Qual a sua opinião sobre essa reforma?
FC: O Brasil gasta em previdência o mesmo que a França ou o Japão, mas estes são países mais ricos e com população mais velha. Não se pode esperar que um país no qual os trabalhadores se aposentam aos 50 e poucos anos cresça a uma taxa anual de 4% ou 5%.
Indivíduos que contribuíram com a expectativa de se aposentar com determinada idade, após a reforma, não poderiam mais fazê-lo. É possível defender determinadas políticas, mas é preciso ser honesto em relação às escolhas.
*Publicado originalmente na edição 893 de CartaCapital, com o título "Déficit humano"

quinta-feira, 3 de março de 2016

E FEZ-SE A DIVERSIDADE



Nos últimos tempos temos seguido tanto a palavra diversidade, nos aplicando a percebê-la em todos os contextos e situações da vida pública e privada, no entanto ao mencioná-la estamos quase sempre mais voltados para uma expressão parodoxon flacus. Um paradoxo da estupidez, pseudo-paradoxo ou paradoxo do mal: contradição auto anulativa, pode se aplicar, por exemplo, a afirmações que se contradizem ou conceitos contrários em anulação mútua, não presentes na natureza, mas inerente ao homem. Foi como um desses paradoxos que se anunciou que somente em 2133 as mulheres receberão remuneração igual a dos homens. Este é um dado lamentável que vem de Davos – encontro mundial para discutir as principais economias globais e seus rumos. Levar-se-á ainda 118 anos, a contar da publicação no Global Gender Report 2015, para que a mulher possa obter equivalência salarial, ainda que em muitos aspectos ela apresente desempenho superior.

Em que pese o número maior de mulheres nas universidades na maioria dos países, nos 145 analisados pelo estudo; destes houve aumento significativo de 22% da desigualdade, mesmo diante das conquistas anteriores os avanços se mostraram tímidos, não se confirmaram ou foram sordidamente obliterados. É o caso do Brasil, que caiu 14 posições no ranking, só em 2015. Esses dados, além de revelar um preconceito criminoso, as mulheres sendo tratadas como cidadãs de segunda classe, demonstra a inabilidade latente do mercado em lidar com o desenvolvimento econômico como ferramenta para promover riquezas e em consequência bem-estar entre os gêneros. Amartya Sen, ao discutir “a relação entre rendas e realizações, entre mercadorias e capacidades, entre nossa riqueza econômica e nossa possibilidade de oportunidade de participação no comércio e na produção”, defende que estas podem ajudar a gerar a abundância individual, além de recursos públicos para os serviços sociais. E mais importante: “Liberdades de diferentes tipos podem fortalecer umas às outras” (grifo nosso).

Este é o ponto a que queríamos chegar: a perpetuação do afastamento da mulher dos locais de geração e multiplicação de riquezas em uma análise macroeconômica mesmo, que envolve mercado e mais valia como aspectos que fazem a roda da economia girar. É no mínimo um desperdício de conhecimento, energia, criatividade e inventividade que retoma a tão propalada diversidade. E que delírios de grandeza nos apartam dela? Um hemisfério direito, ou esquerdo? Cultura? Educação? O que impede que sejamos apenas mulheres e homens produzindo? Tomando decisões? Ou que tipo de pensamento envolve o cenário da tomada de decisões, que define vidas, possibilidade, quanta liberdade individual há na tomada de decisão? Falta a semântica da diversidade. Que ela fosse, talvez menos branca, menos heterossexual, masculina, europeia, não viveríamos, quem sabe, tempos incertos, com relação à diplomacia entre nações; não viveríamos inúmeras diásporas, genocídios por meio da fome, por doenças do atraso a que são submetidas populações inteiras que não têm acesso a bens essenciais à vida, como é o caso dos recursos naturais.

Fosse a tomada de decisões mais diversa e revezada, inclusive em seus aspectos mais elementares e básicos, a exemplo das câmaras de vereadores – em Palmas, cidade onde moro, não se esboça nem mesmo a silhueta de uma vereadora entre integrantes da casa, onde, em pleno cerrado, a língua oficial e as leis soam como em latim –, nas secretarias estaduais, nas presidências de sindicatos, entre os grandes executivos de transnacionais, estas, inclusive, que ditam políticas e modos de vida mundo afora, sem nunca considerar a vida que levamos. Como seríamos sem o seu duvidoso apreço oficial? Justos e alegres pelo mundo, tendo, de fato, como riqueza, a qualidade de vida, o bem-estar social, o desenvolvimento humano. Um mundo onde as liberdades de diferentes tipos fortaleçam umas às outras.

Juliete Oliveira
Palmas-TO, 03 de março de 2016

Imagem: http://memorias-de-taxistas.blogspot.com.br/p/a-mulher-e-o.html