quinta-feira, 28 de abril de 2011

VENDE-SE UM CÓDIGO FLORESTAL (com umas poucas árvores em pé ou pra liquidar o que resta)


Num jogo de estranhas ambiguidades a omitir a venda de consciências e escrúpulos, mais uma vez, numa outra rodada e sob a orientação de novos lances por parte do governo, é colocado  na pauta de votação pelo legislativo brasileiro a revisão do Código Florestal e com ele, no lugar da razoabilidade de argumentos e da busca de consenso em torno da questão, a produtividade de truculências e a coerção ilegítima.

Em que pese a verdade de que o todo tem primazia sobre cada uma das partes que o compõem, a execrável proposta de revisão no Código Florestal busca trabalhar esquartejadamente questões em que só o todo produziria heterogeneidades credíveis. Sendo a proposta resultado de uma “ideologia” que julga não ser necessário pensar o futuro, porque julga saber tudo a respeito dele e o concebe como uma inspiração linear, automática e infinita do presente.

O escritor Walter Benjamin pensava que a segunda guerra mundial tinha privado o mundo das relações sociais através das quais as gerações anteriores transmitiriam o seu saber as seguintes: “Tornamo-nos pobres. Fomos abandonando um pedaço de herança da humanidade após outro, tivemos muitas vezes de a depositar na casa de penhores por um centésimo do seu valor para receber de volta as moedas sem préstimo da atualidade”.

Compreendemos que a esse mesmo destino está fadado os biomas brasileiros, impedidos que estarão de transmitir grande parte de sua herança biológica aos descendentes natimortos - por que eles estão postos à venda e impelidos a desaparecer, pelo novo Código.

Em uma visão que se revela do futuro, quase sempre omitida nos arraiais políticos e pela grande mídia, creio poder interpretá-la assim: para os burocratas do legislativo e os senhores do agronegócio (leia-se também, altos acionistas das concessionárias de energia hidroelétrica), há uma ordem, uma única ordem possível: o lucro. O senhor Audo Rebelo tornou-se, como o relator da revisão do Código Florestal determinado a aprová-la, o disc-jockey animador dessa turma desenvolvimentista.

Nesse ponto da encenação e dos truques do poder se descortina a crise da ideia do progresso e desenvolvimento, como diria Boaventura de Sousa, e com ela a crise da ideia de totalidade que a funda. A visão abreviada do mundo foi tornada possível por uma concepção do tempo presente que a reduz a um instante fugaz entre o que já não é e o que ainda não é. Aprovar a proposta do Código Florestal é agir de um modo a se pregar e bater em um piano com um martelo, e não perceber que a pobreza da experiência não é a expressão de uma carência, mas antes a expressão de uma arrogância, a arrogância de não querer ver e valorizar a realidade da vivência das diversas culturas e do passado do homem do campo, apenas porque não escapam à razão com que são capazes de identificar, valorizar e medir a natureza pelas leis do latifúndio e do mercado.
Juliete Oliveira
Salgueiro/PE, 27 de abril de 2011

terça-feira, 19 de abril de 2011

A GUERRA MIDIÁTICA CONTRA A MULHER


“A partir de um certo ponto, a história não era mais real. Sem percebê-lo, toda a humanidade repentinamente abandonou a realidade.” Ao fazer esse comentário, Elias Canetti se refere à bomba atômica, e procurava sentenciar a destruição do último mito válido: o sol. Não poderia ser outra a epígrafe, ou mesmo a nota de pé de página, uma vez que essas palavras se constituem ainda hoje, em geral, a certeza de que a menor das coisas vence. A justiça foi destronada em um mundo onde o amor, a amizade, o afeto não têm mais poder. E esse paradoxo corrobora os fatos, todos eles, e talvez nos impeça de entendê-los. Simplesmente podemos deixar de lê-los ou de escutá-los. Quem está disposto a estudá-los cuidadosamente, quando as Olimpíadas e a Copa do Mundo tornam tudo obscuro ao redor. Até mesmo dois episódios de violência contra a mulher, ocorridos durante a semana: No primeiro deles uma jovem (quase menina) de 17 anos é visualizada a distância estendida ao chão, na frente do prédio do namorado, de onde teria supostamente se jogado, após uma discussão; no segundo, o jornalista Caio Blinder, do programa “Manhattan Conection”, da Globo News, usou uma palavra chula para se referir à rainha da Jordânia e a outras figuras dos países árabes dominados por ditaduras: “É a Rania, a Rania é a mulher do rei Abdullah. Ela é linda. Ela merece estar em capa de todas as revistas fru-fru, Elle, Vogue etc, mas esteticamente. Politicamente, ela e as outras piranhas são...”.

Como não pensar no avanço dos diretos conquistados pelas minorias, não apenas as mulheres, mas todas as outras, mundo afora e especificamente no Brasil, uma vez que muito recentemente se tenha conseguido aprovar, depois de intensa luta, uma Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Mas ao que parece nenhuma lei teve ainda como suplantar o inconsciente machista dentro e fora da televisão, e muito pior: parece mesmo existir o respaldo de um sistema de mídia que forja e incentiva esse tipo de “idiossincrasia de estilo”, em busca de um melhor resultado na audiência, pouco importando se o que se apresenta é a imagem do feminino como algo descartável em um processo de aniquilação simbólica da mulher. A tragédia leva cedo as muito belas. E a beleza é de súbito um “problema” para a mulher. Somos uma sociedade em que a mulher tem que garantir uma delegacia própria. O feminino ou vira uma questão de polícia ou passa a ser uma desordem linguística. Recomenda-se abertamente em todas as mídias o corpo da mulher como mercadoria. Rotas de turismo partem dos grandes centros mundiais até às praias brasileiras – no verão as mulheres podem ser atacadas livremente.

Em boa parte das narrativas audiovisuais de ficção, face mais importante do chamado mass media, o casamento não é para toda a vida e os filhos são consequência natural e obrigatória da vida a dois, sendo apresentados, quase sempre, como grande possibilidade de realização pessoal. Nesse contexto, o aborto é silenciado e o trabalho por vezes tem papel secundário — estuda-se e sustenta-se somente quando as personagens são pobres, solteiras ou abandonadas, sem pai ou irmão para ampará-las. Ascensão social e poder são obtidos através do casamento com homens ricos e influentes, reproduzindo, na maior parte das vezes, o clichê da “Cinderela”. As “intervenções idiossincráticas”, os “tiques estilísticos” das personagens masculinas ridicularizam e amesquinham, capítulo a capítulo, o universo feminino. Mesmo que supostamente essas “ficções” se destinem preferencialmente às mulheres, como ávidas expectadoras.

A esse esboço geral estão vinculados os dois casos. O que acontece com o corpo da mulher ainda é misterioso, terrível, espantoso.

No primeiro, a menina pobre, muda de país com o auxílio da mãe que foi trabalhar como doméstica em outro continente para poder proporcionar certo conforto à família. Todo um mundo fantasioso é descortinado ante os olhos da menina. Nos bastidores das descobertas há como de costume, um homem rico, idade adulta – vide Leila Diniz –  e a partir daí um relacionamento conturbado, pautado pelo poder financeiro que um exerce sobre o outro. A menina vira alvo dos caprichos do homem e deverá atender às expectativas dele – ser exibida como sua bonequinha de luxo. O fim de tudo sabemos, assistimos a todo instante pela TV, só que nem sempre é ficção. A abandonada realidade.

No outro episódio, belas mulheres que se encaixam perfeitamente no mito de cinderela, ofendidas por um homem em cadeia mundial, simplesmente por que este senhor se considera dono da abandonada verdade, grande jornalista, não cabendo a ele ter que responder pelos seus atos, independente do que venha a fazer e dizer em público, determinado a lançar ao ar o que nele há de mais espúrio e indígno numa catapulta. Vide o caso Pimenta Neves e Sandra Gomide. Ela, assassinada e ele, em liberdade. Obliterada, ainda tem a justiça, uma vez que a pena que coube a Pimenta Neves, reduzida de 18 para 15 anos, ele não cumpre, ainda que uma pena especial de não-reclusão, como cabe, no Brasil, aos poderos. Disso, pouco ouvimos falar, a TV raramente exibe.

Aqui nessas pequenas caixas pretas mora o paradoxo. Tudo, absolutamente tudo, é em tempo real! Foi em tempo real que o corpo da menina passou das 05:00h às 15:00h estendido no chão coberto por um plástico, sujeito a todo tipo de comentários e considerações. Foi em tempo real que o mundo árabe viu alguma de suas mulheres serem desrespeitadas por um individuo que pouco saberá da simbologia que envolve o mundo oriental, tão distante que os ocidentais estão em matéria de história e de imaterialidade desse povo. Aqui, sem que a maioria se dê conta a realidade é abandonada e a ficção abre a cortina e tudo o que poderia parecer real, torna-se (imerso na beleza e no grotesco) mais um episódio banal da ficção-vida. Escusado será dizer que há uma cultura envolta aí, coberta ou silenciada pela barbárie midiática. E que o senhor Caio Blinder e tantos outros senhores não fiquem chateados se não conseguirem rastrear totalmente o que se oferece aqui como indignação e assombro. As nascidas-mantidas- humilhadas me compreenderão.

Juliete Oliveira
Salgueiro-PE, 18 de abril de 2011
fotografia: Francesca Woodman