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quarta-feira, 17 de abril de 2013

Não dá mais pra segurar...




Poucas coisas me tiram a voz, verborrágica que sou. No entanto na semana que passou um episódio me fez a voz morrer na garganta, emudeci, tal foi o grau de assombro que a cena causou, sei que não fui a única a se sentir assim, muitas pessoas devem ter compartilhado do mesmo sentimento de indignação, revolta e impotência. A cena a que me refiro é do renomado artista Gerald Thomas enfiando a sua mão dentro do vestido de uma apresentadora de TV (aberta sic!) e submetendo a moça a tantos outros constrangimentos. Mas absurdo ainda foi as explicações da apresentadora: “por ele ser gay não dei importância”.

A que ponto chegamos? Não sou público do programa em questão, mas, já que o fato tomou relevância e foi divulgado em outros veículos, impossível foi não se estarrecer com ele. Recentemente a violência contra a mulher foi classificada pela ONU como uma pandemia, segundo o estudo divulgado na semana do dia 08 de março, sete em cada dez mulheres no mundo passarão por algum tipo de violência. O que nos revela, ou confirma o absurdo presenciado pela sociedade e que aparentemente não causou grandes constrangimentos, adormecidos que estamos por doses diárias desses absurdos.


Para Boaventura de Sousa: “para além de ocidental e capitalista, a ciência moderna é sexista. O binômio cultura/natureza pertence a uma longa família de dualismos em que podemos distinguir, entre outros, abstrato/concreto, espírito/corpo, sujeito/objeto, ideal/real. Todos estes dualismos são sexistas na medida em que, em cada um deles, o primeiro polo é considerado dominante, sendo ao mesmo tempo associado com o masculino.” Chegamos assim na visualização desse dualismo com os prejuízos sempre do lado inferir da polarização. O Gênero Feminino. 

O Brasil padece de uma esquizofrenia de modernidade, tem as leis mais humanistas e avançadas do mundo: Lei de Meio Ambiente, Lei Maria da Penha, Lei das Águas, Lei de Proteção à fauna. Mas a sua capacidade se esbarra na elaboração dos compêndios. Por outro lado, convivemos com a quase inexistência de aplicação dessas Leis, o que se vê, é: Descumprimento da Lei de meio ambiente; 7ª posição no ranking de países com maiores índices de homicídios femininos no mundo; tráfico de animais e extermínio de espécies, contaminação e mau uso da água, país afora, entre tantas outras situações. A impressão que se tem é que o Brasil esgota todos os seus esforços apenas na representação, na figuração: o culto do parecer, em detrimento do ser.

Pena, pena mesmo! Fico a pensar em nossas filhas, sobrinhas, irmãs, filhas das amigas e nos nossos filhos, também, que herdam uma nação que não respeita em plenitude os seus filhos, que não age para que se possa respeita-los e amá-los como devem ser amados. Quando me dei a escrever o protesto não parava de pensar na música do Gonzaguinha: “Chega de tentar dissimular e disfarçar e esconder / O que não dá mais pra ocultar e eu não posso mais calar (...) / Não dá mais pra segurar explode coração”.


*1 bilhão que Se Ergue – campanha.



Juliete Oliveira

Imagem: Shutterstock

domingo, 10 de março de 2013

Vocábulos de água





1.
“Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” A Metamorfose, Franz Kafka

Eu vi o encontro de Dante com Kafka! Foi um casual encontro num fim de rua, de uma casa do sertão central, entre um menino e um livro. Essa visão reuniu ali não apenas duas pessoas, mas dois mundos que se rastreavam, tendo como bússola sequer a mudança das estações. Aos seis anos, Dante, o menino, consegue avistar as pegadas lendárias, muito mais como uma investida que um e outro esperava, e que também a mim me fez conjecturar sobre novas e intrigantes considerações em torno do que acontece se de repente alguém se desloca ao lado de um grão de luz.

Eu presente-fiquei que de todos os entomologistas do século XX, incluído aí Nabokov, ou mesmo Joyce, Woolf, Faulkner ou Eliot, foi Kafka o que mais radicalmente soube o que é o ambiente. Ele fez o corpo de um inseto triunfar sobre a obscuridade de galáxias inteiras prestes a perecer.
Tudo está remagnetizado e não consumado!

E esse ato de ligação entre natureza e animal como fundamento do ligado, do conectado, do sentir o ambiente a partir de fluxos que não mais o plasmático, de poder ver não mais com a órbita ocular e sim com a energia de um corpo de inseto, capaz de explodir o mundo convencional para fazer florescer ambientes promissores onde seja possível experimentar fluxos outros que não se ligam apenas por sílabas, silvos, balbucios, onomatopeias.

Voltamos a fazer parte de um mundo em que não faremos esvaecer essa ondem antiga, tanto da vida real quanto da vida dos sonhos? Ou alçamos de novo o que não pode ser pego? O que é o território do invertebrado para o vertebrado? E se as relações entre animal e natureza não forem mais rigorosamente bilaterais, se já se encontram irrecuperáveis?

Kafka não poderia de forma alguma apaixonar-se por música ou empreender viagem aos mares do Sul ou a seu ego. Sem ser afeito à racionalidade, Kafka volta-se para o indizível, ou seja, não escreve tão-somente livros, sequer ficções. Kafka ultrapassa o contador de histórias habitual, aquele que tão bem seleciona trechos a que leitores terão acesso numa livraria de bairro, suas próprias histórias intercaladas aí. Ao contrário disso, Kafka argumenta, desencadeia ideias, ele mesmo desde sempre “sem poder mover-se do lugar”, é o mais voraz que pode um escritor, ou para que entendam, é hardcore: faz Gregor Samsa vislumbrar muito mais do que o mero despertar do que a todos sufoca e aliena em meio ao “sono agitado” na névoa social industrializada. O despertar, em Kafka, implica em fazer um novo uso dos fluxos de percepção e consciência, estes sim a operar a transição a um mundo que se inventa.

Sua análise reflexiva a partir de uma nova experiência do mundo remonta o sujeito a uma condição de possibilidade distinta e adversa dele mesmo, e empreende uma síntese cultural construída como aquilo sem o que não haveria mundo. Como objeto do mundo e tendo que suportá-lo como a uma paternidade nefasta, ele se transveste no incognoscível. Não se transforma em um vingador, num bom samaritano ou num homem do capital. Transforma-se naquilo que ninguém, nem o mais desprezível dos indivíduos pensaria em ser. Um repugnante inseto. Assim, a reflexão arrebata-se a si mesma e se recoloca em uma subjetividade invulnerável, para além do ser e do tempo.

O tempo aqui não é mais senhor de si, e nem muito menos fator determinante, ele obedece aos círculos próprios do reino à que o inseto se filia. Crescer aqui poderá não significar “viver”, uma vez que se trata de um inseto adulto e os deslocamentos próprios do crescimento não foram experimentados, pois que, num sentido inverso, a cada instante eu fantasio acerca de coisas como uma criança. Estas coisas estão dentro de nós e queremos que saiam. Imagino objetos ou pessoas cuja presença aqui não seria incompatível com o contexto, e, todavia elas não se misturam ao meu mundo. Daí pensar ter promovido o encontro entre Dante e Kafka, o menino e a lenda, ainda que se saiba que no decorrer dos fatos, Dante arquitetou tudo a Kafka, criou as condições geográficas ao desenvolvimento de espécimes como Kafka, pensou o cimento que daria liga ao universo de seu póstero.

Como experimentar a partir do corpo todas as sensações do ambiente, senão ao andar sobre filamentos e voar com asas vestigiais, com cabeça que aponta para baixo, quase como se ela tivesse sido criada para dar marteladas?

O corpo do inseto fala também sobre as sensações atmosféricas, poluição sonora, lixo, da água, das bacias hidrográficas, vegetação, fauna, e pode ainda falar das concentrações demográficas, dos diferentes territórios, da desterritorialização, das diferenças sociais, do mercado de câmbio, da movimentação da bolsa, da produção de arroz, de soja, da criação de gado, da construção de hidroelétricas, termoelétricas, usinas nucleares, dos poços de petróleo, da fome, das doenças de veiculação hídrica, da legislação ambiental, do código florestal, das florestas ou da inexistência delas, dos desertos, da desertificação, das calotas polares, do buraco de ozônio, das emissões de gases poluentes, das pegadas, do trabalho escravo, da questão de gênero, da mortalidade infantil, do proletariado, da luta pela terra, da luta por pão, por direitos, por direitos étnicos, dos conflitos de interesse, dos conflitos, da educação, educomunicação, da alfabetização, do letramento, da questão marítima e de sua poluição, das chuvas ácidas, dos índices pluviométricos baixos ou altos, das enchentes, dos desmoronamentos, dos deslocamentos populacionais, da diáspora, dos terremotos e das placas tectônicas, dos vulcões e dos seus adormecimentos, dos tsunamis, do conforto visual, atmosférico, ambiental, da ecologia social, mental e ambiental... O seu corpo não substitui a "teoria periférica" por uma "teoria central", ele sente com todas as suas conexões radicais um outro mundo de sustentabilidades.

Se a realidade de minha percepção estivesse fundada apenas na coerência intrínseca das "representações", ela deveria ser sempre hesitante e, abandonado às minhas conjecturas prováveis, eu deveria a cada momento desfazer sínteses ilusórias e me reintegrar ao real, como um estranho dentro do seu próprio corpo.

O pequeno Dante na casa de fim de rua, no sertão central brasileiro, apalpa as folhas da publicação em que Kafka se distende em sua endo condição de ver o mundo. Ler agora, quase cem anos depois, o que Gregor Samsa sentiu organicamente em sua nova condição de vida e mundo, é para Dante uma brincadeira de criança: sentar-se quieto e verter os seus efluentes quando tem nas mãos aquela delirante e tão verdadeira possibilidade. Esta seria a constatação eloquente da próspera herança da sua invenção, ou os sonos hipnóticos encalham, de fato, as paisagens perigosas?


2.
“É proibida a entrada a quem não estiver espantado de existir.”
(cartaz afixado no muro que separa a aldeia de Chora-Que-Logo-Bebes da Floresta Branca)

Quando Raquel Carson gerou a Primavera Silenciosa, ela o fez com o seu corpo para produzir uma fábula para o amanhã... É esta fábula que não se interpreta, nem se compreende, que constitui a passagem estreita às águas de superfície e mesmo aos mares subterrâneos: enormes corpos não diferenciados, interligados, igualmente ameaçados pelo elixir da morte. Que tudo pare um momento, tudo se cristalize (depois, tudo recomeçará). E no ambiente algo se cristaliza? Pode ser que sim, pode ser que não. Para uma cigarra o corpo é todo melodia, existindo para dar sentido a círculos que não pertencem unicamente ao indivíduo cigarra, seus conectores demasiadamente ligados, uma vez que os objetos parciais, são ainda, demasiado orgânicos.

A cigarra existe única e exclusivamente para ser um contralto, como Raquel em um mundo idealizado por Kafka pode ser ofendida pelos outros habitantes através de suas criações químicas de defesa? Justamente porque seu corpo de inseto pleno, sem órgão de anatomia humana, é improdutivo, estéril a outras funções que não o canto que anuncia coisas necessárias como a primavera, nesta condição de cigarra ela é mesmo o engendramento, o inconsumível. Quem precisa de cigarras? De seu ensurdecedor canto renitente? De sua melodia para afetar formigas? Toda uma rede de possibilidades ambientais, uma emoção, uma circunstância. O corpo sofre por estar assim organizado. Sair dos reinos do solo, ganhar asas e na copa das árvores, onde emiti um som para atrair a fêmea e depois gerar vida. Existe aqui um condicionamento para esse corpo, uma pré-condição, um existir entre grades, quais as chances de defesa no ambiente de uma cigarra? O silêncio implacável. Quando nem mesmo os pássaros cantam.

O que foi Kafka para a cigarra Raquel? O enxofre, a criação surreal de todos os produtos sistêmicos em uma tela de Dali, ou Bosch, sem Kafka as cigarras simplesmente existiriam independente de sua prisão corpórea. O que exclui a hipótese de uma verdadeira anestesia e sugere a de uma recusa da deficiência é Raquel existir e ser cigarra.

No território em que coexistem baratas, besouros e cigarras aí também é o território da educação, seja ela ambiental, social, patrimonial, para a água, para os gases, venha com que vestimenta vier, aqui cada atomozinho que seja faz parte da mesma complexidade, corrobora para os mesmos resultados, sejam danosos ou não ao seu meio comum. 

Num ambiente em que a água gera mais expectativa do que em outros lugares do planeta, representando não propriamente a vida, mas a inexistência dela, a pedra deverá para o corpo também ser água, inseto, energia, tudo mais tarde restituído ao carbono que seremos. Aqui se vai ver como os fatos são ambíguos, e toda experiência animal, vegetal e mineral são cruciais e nenhuma explicação é definitiva. Agora devo pensar com o meu corpo constituído de toda matéria frente os grandes discursos da complexidade, muitas vezes esvaziados de corporeidades, da energia que faz a roda da fortuna não parar de se mover. Seremos refém desse movimento? 

O jogo entre Dante e Kafka continua, Raquel entrou no jogo, cada um ao seu modo, antecipando informações que gerarão e geram mais informação, repercutem, esgarçam os tecidos dos ambientes, provocam. Os dois primeiros estiveram presentes em muitos debates nos centros do conhecimento no último século; ela alimentou o cerne de uma comoção mundial na busca por resposta de como viver em harmonia. Será possível?

Quem agride quem, homem ou natureza? Quem é mais predador? Quem devora quem? Quem tem direito sobre o outro? Absolutamente todos os campos do conhecimento se envolveram com a cigarra Raquel tanto quanto nenhum centro de filosofia mundo a fora pôde abrir mão de reconhecer a existência do demônio Dante e do inseto Kafka. Mas que ninguém se engane, isso não tem nada ver com êxito ou sucesso. O que isso sugere são somas, números e ter sempre alguém a apertar os botões das engrenagens do mundo.

Falta a esse jogo um integrante, que se deverá acrescentar aqui, um poeta local, mas fora do lugar, sobretudo porque não quis ser apenas mais um lírico interessante, mas aquele que será capaz de visualizar as relações espaciais entre os objetos e de seus caracteres geométricos com um olhar de cão, mas não qualquer cão, um vira latas, um que se danou, que viveu num bolso de rio, numa cova, sem plumas poéticas.


3.
“Você gosta desse jardim que é seu? Evite que os seus filhos o destruam!” Sob o Vulcão, Malcolm Lowry

“O verbo ser, misto de atribuição e de afirmação, cruzamento do discurso com a possibilidade primeira e radical de falar, define a primeira invariante da proposição, e a mais fundamental. Ao lado dele, de uma parte e de outra, elementos: partes do discurso ou da “oração”. Essas regiões são ainda indiferentes e determinadas apenas pela figura tênue, quase imperceptível e central que designa o ser; funcionam, em torno desse “julgador”, como a coisa a julgar — o judicande, e a coisa julgada — o judicat.” (Michel Foucault, As Palavras e as Coisas).

Nesse único livro João Cabral de Melo Neto trata a linguagem como visceral (oposição a cerebral), o estômago do cão a se revirar e revoltar-se com o meio. A farejar irresoluto qualquer possibilidade. No nordeste uma geomorfologia do ambiente é toda árida para o cachorro, ele não é como os outros animais ditos “adaptados”, capazes de se transfigurar em outras coisas para resistir aos inclementes meses de sazonalidade radial que os afronta. É aí que o cão como um rio se distende. Ele é todo faro, penetra fundo na terra em uma adesão que possibilita compensar as oscilações climáticas, seu corpo adquire um poder precioso sobre os obstáculos, mesmo que esse poder não seja total; ele é sim coberto por fragilidades, externalidades que o expõe mais que a um calango – pele grosa, escamosa mesmo, enfrenta os espinhos da caatinga como couraça –, mas para o cão do semi-árido “perceber” já é envolver de um só golpe todo um devir de experiências num presente que, a rigor, não o garante nunca. Vivo até quando?

Volto, repenso: como os rios pode um cachorro ser intermitente? Se permitir desaparecer na seca, reaparecer no inverno? E qual a regularidade do ser vivo para a inclemência das estações aqui? Existem certezas nesse mundo em geral, mas não das coisas em particular. Aqui é a coisa em particular que faz toda a diferença.

O ventre triste do cão atravessa incólume pequenos vilarejos, um quilombo, um assentamento. Ele mesmo não tem assento em parte alguma. Pode por vezes se deter no vôo impreciso de uma borboleta e admirar-lhe as asinhas ligeiras, o colar furta-cor a lembrar do arco-íris, as belas flores da catingueira formando alamedas imensas, quase como se fossem dar voltas à terra em uma brincadeira infantil de carrossel – ou ainda, um rio caudaloso de amarelo forte, um quadro, uma pintura, um filme. Há um esgotamento, uma fadiga aí, mas já houve épocas piores e muito mais terríveis. Dessa vez ainda, se comparado ao rio, pode o cão, como a paisagem, adquirir transfiguração, transmutar-se – resistir à extrema carência de tudo ali ser.

A postura política patriarcal que guiou certa literatura social e as cartografias geopolíticas expressas a partir das casas-grandes e senzalas, menos do que um pensar e mais um indagar que em nada altera a rotina e ainda mais zelam pelo patrimônio tradicional de seus salões e vastas propriedades, chegariam ao fim algum dia também para ele? Se é que se pode admitir a um cão sentir ou raciocinar, tivesse o cão um chão, um lugar algum seu que não aquele de outro dono e de tanta disputa presente-ficado pela cadela Baleia: “Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se. Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes” (Graciliano Ramos, Vidas Secas).

Ter saído de um parto como os outros mamíferos da terra não lhe confere nenhuma vantagem, ou privilégio. É a este corpo que será preciso proteger, de um modo quase médico. Com o branco da lucidez médica, da higiene médica, mas esse parto é ainda mais extenso, fluente, povoado – é preciso proteger também no Nordeste, o que é Brasil, as pessoas, os vultos quase que elas são. Pelo que o cão serve a esse papel de guardar o outro, os bens, e expor a si, como aquele que não terá nada a perder. Inclusive esse é o jogo que há séculos se joga com habilidade no Nordeste brasileiro: o perde-ganha, e invariavelmente mais que se perde.

Para o clima, para a tempestade, para o sol, para o sal, para o solo, para a água... Ah! Para a água. O ar também meio perdido do nordestino. Para a vontade política ou para a ausência dela, para as frentes de serviço, para o sistema de trabalho e emprego, para as rodovias, para o corte de cana, para a carteira de trabalho, para a cesta básica, para tirar pedras de um lado e colocar de outro, para o abandono familiar, para a prostituição infanto-juvenil, para a gravidez na adolescência, para a morte puerperal, para a morte infantil, para o aborto, para o sistema educacional, a evasão escolar, o letramento, para droga, o tráfico de entorpecentes de animais e de pessoas, o assassinato, a grilagem, a violência contra a mulher, a corrupção em suas diferentes configurações e modos, no que o poder político aqui tem de mais versátil e escabroso.

Acredita o cão, ou melhor, lhe diz o instinto: a vegetação foi reduzida a esse confinamento da condição de bioma pobre, incapaz de gerar riquezas, levada a se consumir em um sem número de atividades degradantes, quase a se prostituir. Reconhecendo-se sempre como aquela que só pode viver sob as condições ressequidas do solo salinizado, servindo quase que exclusivamente ao fogo. Uma estética do calor a se contrapor a outra do frio, em que se consome (não se é consumido) a vida num exercício catártico sem fim? “A estrutura é essa designação do visível que, por uma espécie de triagem pré-linguística, permite a ele transcrever-se na linguagem. Mas a descrição assim obtida não é mais que um modo de nome próprio: deixa a cada ser sua individualidade estrita e não enuncia nem o quadro a que ele pertence, nem a vizinhança que o cerca, nem o lugar que ocupa. Ela é pura e simples designação. E, para que a história natural se torne linguagem, é preciso que a descrição se torne “nome comum” (Michel Foucault, As Palavras e as Coisas).

O nome comum é o que incorpora vestimenta própria na linguagem do sertão, como de todo lugar – o que é uma coisa aqui pode em outro lugar ser outra, toda revestida de delicada conceituação e sentido. A história natural tem como tarefa fundamental “a disposição e a denominação”. Seria a água daquele rio fruta de alguma árvore? Algumas árvores na caatinga são capazes de chocar água em pequeninos ovos. O cão já vira incontáveis vezes, por exemplo, o umbuzeiro derramar água de suas pequenas frutas azedas, que se torna um delicioso néctar quando devidamente preparada nas obesas cozinhas das casas de família. Uma iguaria. O caju de que se extrai transparente refresco levemente amarelado, tão aprazível nos dias de sol intenso. Uma única chuva é capaz de fazer com que as árvores engravidadas de açúcar deem a luz, então ninguém poderá dizer que não pariram água.

É pelo desviar-se que a natureza se reinventa, e reinventa reinventar-se em movimentos imprecisos do oblíquo, do não correlato, do pouco comum, das veredas em curvas, do que no rio é serpentear-se num desaguar. Para ir à cidade, o cão precisa escapar ao medo de um ambiente de multidão, uma vez que o cão só habita o que o sertão lhe fornece: monturos, cactos, quintais, ratos, pequenas cobras, cemitérios, crianças, igrejas.

Daí que talvez desminta a figura do retirante há décadas tatuada ao corpo do sertanejo. Como não tem um dono, não quer ir, é livre e cativo ao mesmo tempo. Como desprender-se daquilo que tão intimamente lhe roça à pele? Os fedores, os cheiros azedos que por vezes lhes servem como comida? Do fundo das redes onde as próprias falas obtêm sentido? Contudo há sempre algo a incitar os demônios que os seres segregam, por isso deve ir ao encontro do mar. Cumprir destino de não ser daqui nem de lá, de lugar nenhum e de todos. E ali onde está o mar, está também o urbano, um maracatu forjado num ambiente outro. “Cobra Norato”, de Raul Bopp, a regurgitar outro mundo para o que lhe vai da imagem de universos pouco visitados: "Rios magros obrigados a trabalhar descascam barrancos gosmentos. Raízes desdentadas mastigam lodo." Assim o cão resolve traçar trajetória até a cidade, o roteiro aprendido na mesma educação pela pedra por Severino. Não mais mineral, mas metafórica, da dureza de encontrar terras outras.

A água e sua ondulação salgada, sua corrente cardíaca, seu modo muito suspeito de se desnudar, penetrar, erodir, sulcar, avançar, tomar etc. Todos os verbos marítimos envelhecem e carcomem a cidade e seus moradores. Nada poderá deter a morte que um dia deverá aportar à cidade. Nada poderá deter a doença, o detrito, a salsugem segregada no bucho podre dos navios. É pelo porto que o cão se embarca na realidade da cidade. Andando ali, ele não se reconhece na paisagem, não divisa nem uma particulazinha sua no forjado urbano. 


Poderá um cão viver ali, cercado de incontornáveis riscos, violências, desigualdades? 

O animal é aquele que no discurso nos olha direto na cara. Enquanto nos olha, se põe a falar. O animal é o olho que fala no discurso. E dessa retórica se vale o cão para ir do sertão à cidade e aos que atravessam os rastros do seu caminhar. Delicado pensar que animais construíram esse novo ambiente: barata, cigarra, cachorro poderiam criar condições para uma retórica da educação? 

Por vezes, só o que perdemos é nosso. Ao deixar para trás o sertão o cão tem-no agora preso ao seu corpo. Seus foram os dias que se perderam na poeira amarelada dos caminhos que cruzou. O mover-se na dança da chuva que desejou, sem muitas vezes alcançar sequer nenhuma gota, que dali a chuva é levada pelos ventos que orientam o terror, não a esperança. 


Por vezes só o que morreu é nosso. O fúnebre poema, a cantiga, a ladainha pagã que acompanha o morto, e que para ele é improvisada, mas para que ele se faça acompanhar dessa singular beleza, é preciso que esteja morto. O choro, a saliva, o carpir lhe fazem pertencer de novo ao chão – o que não lhe pertence mais é não fluir a música, esgarçada pelos últimos momentos.




Bibliografia

BOPP, Raul, “Cobra Norato”, José Olympio, 1994.
CARSON, Rachel, “Primavera Silenciosa”, Gaia Editora, 2010.
FOUCAULT, Michel, “As Palavras e as Coisas”, Martins Fontes, 2000.
NETO, João Cabral de, “Morte e Vida Severina”, Alfaguara, 2007.
NETO, João Cabral de, “O Cão Sem Plumas”, Alfaguara, 2007.
KAFKA, Franz, “A Metamorfose”, Vida Cultural, 2002.
RAMOS, Graciliano, “Vidas Secas”, Record, 2006. 

Juliete Oliveira (Arte e Pensamento: A Reinvenção do Nordeste. Organização André Queiroz. Editora SESC
Imagem: sítio de poesia

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Corpo holograma


No mesmo dia em que uma chuva de meteorito atingiu a terra ferindo algumas pessoas, o que pode ser considerado um fato raríssimo, assisti acidentalmente a um fato que no caso da Amazônia não é de maneira nenhuma raro, o que é raro, é assistir a uma batida policial em um local de possível exploração sexual de menores! Estava almoçando ao contemplar a cena, e foi impossível continuar a degustar o delicioso almoço aos moldes nordestino que era servido no momento. Estou no olho do furacão! Em Altamira/PA, que hoje se constitui um dos principais locais de migração de mão-de-obra, de todas as espécies no território nacional.



Ver um objeto é ou possuí-lo à margem do campo visual e poder fixá-lo, ou então corresponder efetivamente a essa solicitação, fixando-o. Quando eu o fixo, ancoro-me nele, mas esta ‘parada’ do olhar é apenas uma modalidade de seu movimento: continuo no interior de um objeto a exploração que, há pouco, sobrevoava-os a todos, com um único movimento fecho a paisagem e abro o objeto.” Merleau-Ponty. O objeto aqui é o corpo da menina, que também é o meu, o da minha filha, o da minha mãe, seria o objeto que me habita e que é habitado por mim. Doeu, dói. As meninas sendo recolhidas em uma ambulância da secretaria municipal de saúde. Denotou doença, falta de sanidade, enfermidade. Estamos, somos enfermas todas as mulheres quando o nosso corpo é alvo do prazer mórbido do outro, quando a violência invade e profana entranhas tão jovens e por vezes inocentes.

A violência contra a mulher não arrefece. Quando se oferece oportunidade de trabalho no Brasil, com a abertura ainda colonial de frentes de serviços, oferece-se sexo, carne barata, ou até gratuita, oferece-se fome, descontrole, ant-desenvolvimento e um manancial de sofrimento que pode se perpetuar por inúmeras gerações após o fato. Com todo o discurso que temos hoje na ponta da língua, em torno da sustentabilidade, erramos sempre, quando o ativo envolvido é o corpo.

Holograma é a fantasia de captar a realidade ao vivo que continua – desde Narciso debruçado sobre a sua fonte. Suspender o real a fim de o imobilizar, suspender o real no mesmo momento que o seu duplo. Debruçamo-nos sobre o holograma como Deus sobre a sua criatura. “A Polícia Civil desarticulou, na noite de ontem, uma casa de prostituição que funcionava por meio de um esquema de tráfico interno de pessoas para exploração sexual, na zona rural de Vitória do Xingu, oeste do Pará. No local, cinco pessoas eram mantidas em cárcere privado – uma travesti, três mulheres adultas e uma adolescente – todas da região Sul do Brasil. O gerente e um funcionário do local foram presos em flagrante e encaminhados para a sede da Superintendência da Polícia Civil na Região do Xingu, em Altamira, para lavratura dos procedimentos policiais. O crime foi denunciado por uma adolescente de 16 anos, que fugiu ontem (13) do estabelecimento. A prática criminosa foi confirmada, por volta de 22 horas, durante operação policial deflagrada pela Polícia Civil sob a coordenação do superintendente regional, delegado Cristiano Marcelo do Nascimento”. (http://www.policiacivil.pa.gov.br/?q=content%2Fpol%C3%ADcia-civil-desarticula-esquema-de-tr%C3%A1fico-de-pessoas-em-vit%C3%B3ria-do-xingu)



Juliete Oliveira
Foto: Takeshi Mano
Altamira/PA, 15 de fevereiro de 2013

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Da educação mercadoria à certificação vazia



Enquanto não houver uma mudança radical, o próprio sentido de educação estará comprometido, posto que seu fim mais elementar não é atingido: em vez de promover a emancipação humana, produz lucro para o capital que só enxerga as camadas sociais C, D e E quando estas se apresentam como potencial mercado consumidor.

O ensino superior, público e privado, no Brasil passou por grandes transformações nas últimas décadas. Essas mudanças – travestidas de democratização, por favorecerem o acesso – visaram atender a uma proposta de privatização e barateamento da educação.
O Ministério da Educação (MEC) alardeia números, sobretudo para organismos internacionais – que obrigam o país a se enquadrar em padrões estipulados por eles na competição do mercado de consumo, trabalho e pesquisa –, que demonstram o crescimento do acesso ao ensino superior, ainda que distantes daqueles objetivados pelo Plano Nacional de Educação (PNE) (o acesso é de apenas 13,8% dos jovens, entre 18 e 24 anos). Porém, esse suposto processo de inclusão tem facilitado, para além do aceitável, um crescimento vertiginoso das instituições de ensino superior (IES) privadas, com desdobramentos que passam pela precarização do trabalho docente e pela formação duvidosa que essas empresas têm oferecido aos alunos por ela formados.
A predominância de objetivos economicistas em detrimento dos pedagógicos nas IES privadas permitiu um fenômeno relativamente novo no Brasil: a formação de conglomerados educacionais, grandes empresas, de capital aberto e com forte participação de grupos estrangeiros em seu quadro de acionistas. A autorização para funcionamento dessa espécie de oligopólio do setor educacional tem intensificado a visão mercantil da educação superior no Brasil. Os exemplos mais representativos desse modelo de organização empresarial na educação ficam por conta dos grupos educacionais Kroton-Pitágoras, Estácio de Sá, SEB (Sistema Educacional Brasileiro) e Anhanguera Educacional. Esta última, com a recente aquisição da Uniban, passou a ser o maior grupo educacional do país, atendendo aproximadamente 400 mil alunos em campi espalhados por diversos estados brasileiros. Além disso, manteve sua projeção de crescimento de atingir 1 milhão de estudantes em cinco anos, segundo matéria do Valor Econômico de 17 de novembro de 2011.
A alteração no padrão de financiamento das IES privadas promoveu uma mudança significativa no modelo de gestão: o papel que antes era predominantemente exercido por mantenedoras, de caráter familiar ou religioso, hoje passou a ser de responsabilidade de bancos ou fundos de investimentos que contratam executivos como seus representantes, padronizam procedimentos de relações de trabalho nos departamentos de recursos humanos e prestam contas ao fundo de ações. Decorre daí um perfil de gestão alinhavado com a lógica empresarial, sob responsabilidade de executivos, e muito distante dos objetivos educacionais que sempre foram sustentados por professores e pesquisadores.
Abandono do Estado
Tomado pela óptica do lucro, o setor educacional privado tem se valido, oportunamente, do abandono do Estado na oferta de vagas públicas para a formação superior. Dessa forma, as IES privadas, cuja existência deveria ter um caráter complementar, acabaram predominando e se consolidando em grupos que formulam e ditam as regras de seu interesse para a (des)regulamentação do setor, regras essas beneficiadas pelas chamadas políticas de parcerias público-privadas, as quais são alicerçadas sobre o princípio da transferência de dinheiro público para a iniciativa privada com a finalidade de que esta última cumpra o papel que o Estado se nega a exercer. No caso do ensino superior, essas transferências se dão predominantemente por meio do Programa Universidade para Todos (ProUni) e do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), além dos programas de benefícios de isenção fiscal oferecidos pelo BNDES. Nesse ponto, o discurso falacioso do Estado e o do setor privado convergem: trata-se de iniciativas e proposições que manifestam concretamente a preocupação com a formação do brasileiro e com o desenvolvimento do país!
De modo geral, a consolidação da mercantilização da educação e a formação de oligopólios educacionais têm ocorrido com base na incorporação de princípios e fundamentos do setor empresarial, ou seja, na otimização dos recursos. Como afirma Marilena Chauí (2001), “a Universidade está estruturada segundo o modelo organizacional da grande empresa, isto é, tem o rendimento como fim, a burocracia como meio e as leis do mercado como condição”. Essa fórmula – clássica do neoliberalismo – consiste na diminuição das despesas para o consequente aumento dos lucros. Assim, com vistas a assegurar um perfil rentável − à empresa, é claro −, torna-se necessária a precarização das relações de trabalho: redução de salários, perda de direitos, ameaças e cobranças pelo desempenho da instituição nas avaliações externas promovidas pelo MEC são alguns traços da rotina de professores das IES privadas.
Ao mesmo tempo, concorre para intensificar os contornos dramáticos desse quadro a expansão da modalidade EaD (educação a distância), que em 2010 fechou o ano com 973 mil alunos matriculados, o que corresponde a 30% de todos os universitários em instituições privadas. Nesse caso, a educação mediada pela tecnologia, que deveria servir para aproximar os extremos sociais, acaba por aprofundá-los. Contudo, para os empresários, o aliciamento desse recurso é tomado como mais uma vantagem mercadológica capitalista, sobretudo por potencializar sua capacidade de lucro.
Na outra ponta, os salários praticados nas IES privadas são – via de regra – aviltantes, o que obriga muitos profissionais a lecionar em várias instituições, seja para compor a renda, seja para se prevenir das demissões, muitas vezes arbitrárias. Nesse contexto, os professores se veem impedidos de desempenhar tarefas diretamente ligadas à sua função (e ao ensino superior, ou seja, ensino, pesquisa e extensão), absorvidos que estão por uma jornada de trabalho extenuante. No entanto, paralelamente a isso, ocorre um processo silencioso de captura da subjetividade dos docentes com objetivo de estabelecer uma competição interna, cuja face mais alarmante é a perda da autonomia. Como toda competição tem exigências, impõe-se que esses profissionais – para terem condição de competir – sejam aguerridos, “pró-ativos”, competentes e indiferentes às questões coletivas, o que os leva a um distanciamento de seus sindicatos e associações e permite, muitas vezes, que sejam – deliberadamente – vistos como mão de obra manipulável pelos patrões.
Precarização e intimidação
Se de um lado temos a perda da autonomia dos professores como uma ameaça à própria noção de função docente, de outro notamos que, por parte dos empresários da educação, a oferta de uma formação aligeirada tem exigido profissionais cada vez menos críticos e progressivamente mais alienados da prática educativa. Não é raro o relato de professores do ensino superior que têm seus conteúdos – planos e ementas de cursos –, bem como suas avaliações, elaborados por um terceiro que nunca sequer esteve em uma sala de aula. Essa tentativa, por parte dos patrões, de padronizar a prática pedagógica para garantir um rendimento mínimo nas avaliações externas evidencia de maneira cabal seu propósito de controle absoluto sobre a mercadoria que vendem.
Dessa forma, a reação e a resistência a essa prática de mercantilização da educação impõem grandes desafios. No estado de São Paulo, que acompanhamos mais de perto, tem sido cada vez mais difícil o enfrentamento com os patrões do ensino superior nas campanhas salariais organizadas por nossa federação, a Fepesp (Federação dos Profissionais de Educação do Estado de São Paulo), pois há um evidente conflito nas pautas apresentadas para negociação. Do lado de lá, a ofensiva é para subtrair direitos historicamente conquistados e que, vistos com a luneta do capital, representam entraves normativos à expansão dos lucros. Em razão disso, questões como plano de carreira, regulamentação da EaD e aumento real são deliberadamente ignoradas pelos patrões, que, por sua vez, promovem lobbiesjunto ao Poder Legislativo, a fim de que as regras do setor continuem a beneficiá-los.
Entretanto, a predominância de valores empresariais na organização das IES e a falta de regulamentação efetiva por parte do MEC têm imposto uma permanente ameaça, ainda que velada, que é o desemprego. Assim, os professores insatisfeitos com salários e condições de trabalho incorporam a responsabilidade incutida pelo patrão, de que o mercado funciona assim: os insatisfeitos que se mudem. A aceitação dessa ideia leva a um comportamento defensivo, porque nos faz crer que nada pode ser feito e, por isso mesmo, qualquer iniciativa coletiva deve ser vista como prejuízo ao próprio trabalhador.
Há também que se ressaltar a necessidade urgente de que o debate sobre a educação seja tomado como fundamento para um crescimento qualitativo e efetivo do Brasil, sobretudo para a população que ainda anseia conhecer na prática a longo prazo esse crescimento. Para validarmos o princípio democrático do direito à educação, sem, contudo, ignorar que o mercado do ensino privado não arrefecerá a curto prazo, precisamos assegurar o investimento de 10% do PIB na educação pública – que estimamos universal e de qualidade –, a fim de que ela seja o referencial para o setor privado, e não o contrário.
Enquanto não houver uma mudança radical nesse quadro, o próprio sentido de educação estará comprometido, posto que seu fim mais elementar não é atingido: em vez de promover a emancipação humana, produz lucro para o capital que só enxerga as camadas sociais C, D e E quando estas se apresentam como potencial mercado consumidor.
A forte presença do controle corporativo em um setor essencial como a educação provoca sérias fissuras na malha social, na medida em que os desdobramentos da transferência tácita da responsabilidade do Estado para a iniciativa privada têm autorizado o funcionamento de fábricas de diplomas com certificação vazia, para uma população que, embriagada pela democratização do acesso, ainda não se sabe enganada.

* Andrea Harada Souza é Professora de literatura, presidente do Sinpro Guarulhos e membro da coordenação estadal da CSP-Conlutas.
** Publicado originalmente no site Le Monde Diplomatique.
(Le Monde Diplomatique)
Imagem: Gordon Matta Clark

sexta-feira, 6 de abril de 2012

De queijo, impunidade e outros odores sujos da lei
por Juliete Oliveira

Tribunais podem cheirar a queijo, instalados numa venda do Mississippi rural numa história contada por William Faulkner. Outros podem exalar odores menos palatáveis, ainda que sediados numa corte suntuosa e com localização nobre numa capital federal. O mau cheiro da sentença – a um só tempo técnica e política, ética e jurídica da ministra do Superior Tribunal de Justiça Maria Thereza de Assis Moura contra vítimas de estrupo. Três meninas de 12 anos. O mau cheiro e a vergonha assinalam o horizonte extenso dessa questão. Os desastres que expõem. Quem estará resguardado no ambiente refinado dos tribunais, se aí se fabricam histórias a partir de realidades falsas, alucinadas, para lá de ficcionais? Prostitutas, meninas ou adultas, desde então com culpa permanente no cartório, a se validar o senso comum e o preconceito das ruas na interpretação de uma corte de justiça. Tal seria a condição da prostituta, a culpa? Prostituta, no Brasil, não teria defesa? Seria este o crime preferencial, verdadeiro? Ou bem ao contrário do que supõe a ministra, sua alegação se fundamentaria numa visada arcaica, muito antiga mesmo, constituída por uma instância de autoridade contra outro que sequer tem o corpo para se defender? Até mesmo o Estado patriárquico pode sentir aí o cheiro nauseabundo do preconceito e da impunidade. A determinação da ministra, ou seria mais correto dizer, seu discurso, incorpora a cifragem da censura e do recalcamento meramente moralista e retrocede a uma sociedade em que as desigualdades prosperam, sobretudo porque as vítimas “tomam o lugar” do réu nos tribunais. Com efeito, um parecer de “justiça” que vê em meninas prostituídas tamanha periculosidade – “as vítimas, à época dos fatos, lamentavelmente, já estavam longe de serem inocentes, ingênuas, inconscientes e desinformadas a respeito do sexo”, não corresponde a nenhuma das “mudanças sociais” operadas na sociedade brasileira, antes, ao retrocesso das mutações, às viragens próprias do poder. Ou ainda mais, remete a uma autoridade publicamente reconhecida que diverge da obtenção legal e consensual de que a infância deve ser protegida, sobretudo da exploração sexual e suas variantes. Uma vez que meninas não vêm ao mundo para ser prostitutas. São crianças, e se tão logo estão “longe de serem inocentes”, esse é um desiquilíbrio que cabe à sociedade e à justiça restabelecerem. Que meninas de 12 anos possam ser consideradas nocivas por conta da experiência dramática em que vivem, podendo inclusive ser penalizadas pela vulnerabilidade da sua inocência, torna irredutível o desenrolar de uma sessão na corte e do seu registro escabroso: uma juíza do Supremo Tribunal de Justiça conflituar os termos experiência (“conhecimento”) e inocência (“ser não nocivo”) em defesa de um estuprador, libidinoso e patético. Por que Faulkner teria instalado uma sessão da corte numa venda de arrabalde? Talvez porque os produtos ali expostos, todos de baixa qualidade e possivelmente fora do prazo de validade, se equiparam aos pronunciamentos e decisões tomadas – “chegando em intermitentes lufadas, momentâneas, breves, por entre o outro cheiro, constante, o cheiro e o senso, de medo...” Crianças que desde tenra idade se vendem por alguns trocados nas ruas das cidades Brasil afora, atravessam enfileiradas de uma ponta à outra na imagem desolada destas três meninas que, ao que parece, ao que tudo indica, foram vendidas agora, sob o abrigo da lei e da justiça, uma vez mais.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

O que aprendi com as nuvens

                                                                                         Para o VII Fórum Brasileiro de Educação Ambiental


Ao sobrevoar Salvador numa aeronave pequena advinda do sertão pernambucano, tive dois insights, o primeiro: as cidades, quando vistas do alto, por maiores que sejam se constituem de pequenos pontos, quase que como pontinhos que alteram a continuidade da paisagem da terra. O segundo: o parcelamento do solo pode ser razoavelmente compreendido quando se tem em mente essa perspectiva da geografia lá em baixo. 

Mas o que se sabe mesmo com extrema clareza, é que essa partilha obedece a fatores outros que não se filiam única e exclusivamente à alternativa locacional justa, para quase todos os ambientes. Jean Baudrillard em seu “simulacros e simulações” versa sobre a distribuição aérea dos hipermercados: Há que ver como centraliza e redistribui toda uma região e uma população, como concentra e racionaliza horários e percursos, práticas – criando um imenso movimento vaivém. Contudo, ele vai mais além, denuncia que os abjetos expostos nesses ambientes não são mais mercadorias e sim testes, que nos interrogam e somos intimados a responder e que a resposta está incluída na pergunta. Uma mensagem dos media.


O que me levava a Salvador buscava discutir também esses pontos, talvez por isso a percepção das nuvens envolvessem tais aspectos. O VII Fórum Brasileiro de Educação Ambiental se constituiria num espaço “livre” para fazer voar o pensamento. Muito mais do que as condições climáticas, bióticas, hídricas do ambiente lá esteve em discussão o sujeito, como uma instância não evidente a se restabelecer: não basta pensar para ser, como proclamou Descartes, já que inúmeras outras maneiras de existir se instauram fora da consciência, ao passo que o sujeito advém no momento em que o pensamento se obstisna em apreender a si mesmo e se põe a girar como um peão enlouquecido, sem enganchar em nada dos territórios reais da existência, os quais por sua vez derivam uns em relação aos outros, como placas tectônicas sob a superfície dos continentes.


Descobrimos no Fórum a necessidade de qualificar a nossa participação nos processos decisórios, e que devemos enxergar o projeto de desenvolvimento ao qual o Brasil se atrela e que isso faz parte de um projeto mundial que não leva em consideração subjetividades e singularidades comunitárias, uma recusa que nos adoece imensamente. “Trata-se, na verdade, de fazer que intervenham saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados (pelo olhar estrangeiro). Contra a instância teórica unitária que pretende filtrá-las, hierarquizá-las, ordená-las em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns.” Salienta Michel Foucault.


Estando ali e aprendendo uns com os outros fomos além: o saber empossando a vida toda, em um curso apaixonado e imprevisível próprios dos saberes que não são amarrados por convenções e estão dispostos como uma xícara de café oferecida ao amigo em um dia qualquer.


Juliete Oliveira

Salgueiro-PE, 02 de abril de 2012.

quinta-feira, 8 de março de 2012

102 anos de luta pacífica


As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios.
Ana Cristina Cesar


Há 102 anos, em 1910, a socialista alemã Clara Zetkin propôs, na 2ª Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, na Dinamarca, a criação do Dia Internacional da Mulher, 8 de março, em homenagem as mulheres que morreram na fábrica em 1857.
Toda vez que penso nesta história imagino aquelas mulheres felizes e ansiosas por terem conseguido uma reunião, seriam ouvidas.
Finalmente poderiam falar de suas dificuldades, das 16 horas diárias de trabalho, da equiparação salarial, pois só recebiam um terço da remuneração masculina, tratamento digno dentro do ambiente de trabalho e tantas outras simples e justas reivindicações.
Choro a dor do espanto, do desespero de se encontrarem trancadas e morrerem queimadas. Em quem pensavam aquelas mulheres? Provavelmente em seus homens, filhos, maridos, pais.
Sempre foi assim a luta feminina jamais derramou o sangue masculino em seus protestos pela busca da igualdade, do reconhecimento, do respeito, da valorização. Foi e é pacífica, sem armas, sem violência. No entanto quantas são as histórias de mulheres mortas, as tecelãs operárias de Nova York¹ as alunas de Engenharia vítimas da loucura de um aluno machista no recente ano de 1989, no Massacre de Montreal². E quantas são as vítimas anônimas, porque disseram não, porque quiseram trabalhar, estudar..., foram mortas por homens, pelos seus homens.
Nós, mulheres rasgamos sutiãs, realizamos passeatas, batemos panelas, às vezes pelos direitos dos maridos, em referência ao protesto das esposas de militares durante a greve da Polícia Militar do Tocantins em 2001.
E o mais interessante é que a luta nunca foi para tomar o poder ou território masculino, ao contrário, pela igualdade em nossas diferenças, a valorização das características femininas. Por que tudo que é feminino é considerado pejorativo, insignificante, prejudicial? “mulher fala muito, é vaidosa, emocional”, quando que a capacidade aguçada de comunicação, o cuidado zeloso consigo mesmo e principalmente a capacidade de sentir deixaram de ser importantes para uma sociedade civilizada. Somos diferentes, que maravilha! Na natureza nenhuma folha é igual a outra e na diferença se faz o equilíbrio a completude.
E todas as conquistas foram comemoradas sem o desdém arrogante da vitória pela vitória, e sim com a alegria amorosa de quem conseguiu um futuro melhor para todas e todos.
A luta se fará ainda por cem anos, pacífica pela fraternidade entre os gêneros e contra toda e quaisquer formas de discriminação e preconceito.

Letícia Bordin
março 2012

 
¹No Dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos, situada na cidade norte americana de Nova Iorque, fizeram uma grande greve. Ocuparam a fábrica e começaram a reivindicar melhores condições de trabalho, tais como, redução na carga diária de trabalho para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. A manifestação foi reprimida com total violência. As mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas, num ato totalmente desumano.

²Massacre de Montreal – A tragédia ocorreu na Escola Politécnica, em Monteral, no Canadá, há quase 20 anos, em 1989. Um rapaz de 25 anos invadiu a sala de aula e ordenou que os homens (aproximadamente 48) se retirassem da sala, permanecendo somente as mulheres. Gritando: “você são todas feministas!?”, ele começou a atirar enfurecidamente e assassinou 14 mulheres, à queima roupa. Em seguida, suicidou-se. O rapaz deixou uma carta na qual afirmava que havia feito aquilo porque não suportava a idéia de ver mulheres estudando engenharia, um curso tradicionalmente dirigido ao público masculino.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Lúcio Flavio Pinto é um perseguido político –  pelos governos que se revezam no Pará e que não mudam a condição de entrega deliberada das riquezas do estado, submetidos e omissos aos modelos econômicos que foram se impondo; um perseguido político pelas classes dominantes, pelo poder judiciário, pelas elites que tudo tomam para si como forma de lucro, decorrente de golpe, fraude, trapaça. Esses que atuam na Amazônia e a empurram para a barbárie, o atraso, a degradação. E o jornalismo de Lúcio Flávio Pinto é sua experimentação política, denota posição ética, não se restringe apenas à função de informar, ainda que informe, mas se utilizando da informação para pensar as relações socias de poder, não apenas os temas (a violência, a ocupação, o desmando), mas os paradoxos, contradições, antíteses. Daí a palavra que prospera admiravelmente é a vida, suas formas de liberdade ativa.  

''No Pará não apenas o grileiro consegue se apropriar das terras públicas, como ainda se precisa indenizá-lo quando se denuncia''. Entrevista especial com Lúcio Flávio Pinto 

   

Imagine a cena. Você é jornalista e decide usar seu trabalho para denunciar um empresário que se considerou dono de uma terra pertencente ao patrimônio público. O fato é comprovado judicialmente. No entanto, o empresário usa o poder financeiro para deixar claro que não gostou de uma expressão utilizada em sua denúncia. Você é processado por danos morais ao tentar esclarecer a opinião pública e defender o patrimônio nacional. E o pior: você é condenado pela justiça a indenizar o grileiro ofendido. Resumidamente, este é o caso real do jornalista Lúcio Flávio Pinto, que concedeu a entrevista a seguir, por telefone, para a IHU On-Line, relatando detalhes do processo do qual é vítima.

IHU On-Line – Pode explicar brevemente o caso da grilagem de terras e do processo movido pela Construtora C.R. Almeida contra você?
Lúcio Flávio Pinto – Em 1995, Cecílio do Rego Almeida adquiriu o controle acionário de uma empresa de Altamira, chamada Incenxil. Com essa compra, vieram vários papéis, que eram registros e que estavam no cartório, embora não tivessem o título para que essas terras passassem do domínio do estado para o domínio particular. Com esse controle ele se considerou dono de uma área em que apenas uma das fazendas somaria quatro milhões e 700 mil hectares. Um ano depois, em 1996, o Instituto de Terras do Pará – Iiterpa entrou com uma ação de cancelamento e anulação desses registros, por serem fraudulentos. A ação foi recebida pelo então juiz de Altamira, onde hoje está sendo construída a hidrelétrica de Belo Monte, e a empresa recorreu para o Tribunal. O primeiro a dar uma sentença favorável foi o desembargador João Alberto Paiva, que restabeleceu a plenitude do registro que havia sido cancelado pelo juiz local da comarca. Em seguida, o estado também apelou, entrando com interdito proibitório para impedir que qualquer pessoa entrasse nessa vastidão, que caso se constituísse um estado, seria o vigésimo primeiro maior estado do Brasil. A desembargadora Maria do Céu Cabral Duarte concedeu o interdito proibitório antes mesmo de receber o pedido. Todas essas irregularidades eu fui denunciando, porque também sou muito amigo do que era então diretor do departamento jurídico do Iterpa. E nós preparamos, juntos, uma ação para cancelar esses registros. Cecílio ficou extremamente irritado com a minha participação e com os meus artigos. E entrou na comarca de São Paulo com uma ação de indenização por dano moral, porque se considerou ofendido pelo uso da expressão “pirata fundiário”. Essa ação foi deslocada de São Paulo para Belém, porque o local certo é Belém. Mas o juiz de São Paulo que recebeu também uma ação parecida contra um repórter da revista Veja, movida por um vereador de Altamira, não aceitou a ação. E não apenas inocentou os réus, como também os elogiou, dizendo que estavam defendendo o patrimônio público. Eu fui o único condenado, em 2006, por um juiz que não era o titular da vara onde estava o processo. Ele ocupou essa vara por apenas um dia e devolveu o processo quando a titular já havia retomado o controle da vara. Ele não podia mais decidir. E para que a sentença dele tivesse validade, assinou com data retroativa de quatro dias anteriores. Eu fui condenado a pagar oito mil reais de indenização, retroativas a 1999, quando saiu meu artigo no Jornal Pessoal, que é um quinzenário que mantenho aqui, que com os juros e correção monetária, daria hoje 20 mil reais. Eu recorri, mas o Tribunal negou vários recursos, inclusive quando o autor da ação (Cecílio do Rego Almeida) morreu, em maio de 2008. Foi mantida a sentença. Durante esse longo percurso de 11 anos, eu só perdi e várias arbitrariedades foram cometidas. Quando o processo finalmente subiu para Brasília, foi descoberto um erro formal, que fez com que o presidente do Superior Tribunal de Justiça não aceitasse o recurso. Nesse momento, achei que já era demais, porque desde 1992 venho sofrendo processos por pessoas que não tem a mínima preocupação em esclarecer o público, que não exercem o direito de resposta, e que encontraram no poder Judiciário um cúmplice, para me impedirem de continuar a exercer o jornalismo, o que eu faço há 46 anos.
Então, era o limite. E resolvi não recorrer dessa decisão. Abri uma subscrição pública para as pessoas que quisessem contribuir para indenizarmos o grileiro. Espero agora que o processo venha com a execução da sentença. E no dia em que for para pagar, vou comparecer e vou convidar todas as pessoas que participaram dessa subscrição para irmos fazer um ato simbólico no Tribunal, que é entregar o dinheiro e mostrar que no Pará não apenas o grileiro consegue se apropriar das terras públicas, como ainda se precisa indenizá-lo quando se denuncia.

Quem denuncia é punido
A revolta foi ainda maior porque, em novembro do ano passado, a Justiça Federal de primeiro grau aceitou uma ação do Ministério Público Federal e mandou cancelar os registros do Cecílio do Rego Almeida, porque eram indevidos. Ou seja, reconheceu que realmente ele fez uma grilagem. Então, para a Justiça Federal trata-se de uma grilagem. Para a justiça de São Paulo, quem denunciou não apenas não deve ser processado, como deve ser elogiado, porque defendeu o patrimônio público da apropriação ilícita. E para o Tribunal de Justiça do Pará, que tem a jurisdição sobre o segundo maior estado da federação, quem denuncia é punido e as maiores arbitrariedades são cometidas, porque não apenas o tribunal favorece o grileiro, mas também quer se livrar de um crítico incômodo. Todos esses anos em que estou sendo processado na justiça, desde setembro de 1992, em 33 processos, tenho sido vítima de uma perseguição da justiça do Pará. Eu sou talvez o único jornal, embora pequenino, que mostra todos os erros do tribunal. E não é só contra mim que o tribunal faz isso. É que a justiça do Pará é muito ruim.

IHU On-Line – O que lhe motivou a desistir de recorrer à justiça neste processo? Qual o significado político deste gesto?
Lúcio Flávio Pinto – É justamente mostrar que eu estou em um julgamento político. A lei foi deixada de lado, a verdade foi deixada de lado, meus argumentos não foram considerados, as provas dos autos foram ignoradas para me punir, para me calar, para me intimidar. Meu Jornal Pessoal tem 25 anos e ele é sempre crítico, nunca foi desmentido, porque sempre tive essa cautela de só escrever sobre aquilo que posso provar em qualquer estância, administrativa ou judicial. A maneira que eles encontraram foi criar um processo político, em que não interessa o que eu estou dizendo, mas que tenho que ser condenado. Já que eles agiram politicamente, eu resolvi reagir politicamente. Mostrar que eles querem que se pague para um grileiro que está se apropriando de uma área no Pará do tamanho da Bélgica, onde moram 10 milhões de pessoas. Então, vamos pagar. Agora, o culpado é o Tribunal de Justiça do Pará. Tem gente boa lá? Tem. Tem gente competente? Tem. Mas que não tem nenhum acesso ao poder, que não modificam as decisões. O Tribunal se transformou em um lugar onde os criminosos estão conseguindo ganhar. Ninguém provou que o que eu disse era mentira, mas eu sou condenado. Não me deixam o direito de provar. Então, eu quis fazer uma denúncia aproveitando uma arbitrariedade do Tribunal para que a opinião pública não só saiba, como também participe, porque quem doou dinheiro para pagar a indenização está aceitando pagar o sujeito que só não foi para a prisão porque completou 70 anos e a prescrição da pena que cabia a ele já estava prescrita pela idade dele. Se não fosse isso, ele teria uma ordem de prisão da justiça federal. E para a justiça do estado, ele tem razão. As pessoas estão contribuindo e espero que logo adiante se alcance essa estimativa no valor da indenização. Nestes próximos dias estou lançando um livro contando todos os fatos e citando os nomes de todas as pessoas que participaram disso que eu chamo de um "gulag tropical".

IHU On-Line – O que esse episódio evidencia sobre a situação da grilagem de terras no país? O que está em jogo nessa questão?
Lúcio Flávio Pinto – Em primeiro lugar, mostra que tem que se apoiar no CNJ para aumentar o controle externo do poder Judiciário, que é, dos três poderes constitucionais, o que está menos visível e o que está mais refratário ao controle da sociedade. Em segundo lugar, a grilagem se intensifica todas as vezes que há alguma incerteza econômica. Então, as pessoas que têm dinheiro procuram, comprando terras, criar uma reserva de valor contra as ameaças reais, possíveis ou imaginárias, da economia. As terras, pelo seu baixo valor e pelo conceito errado do uso dos recursos naturais da Amazônia (que torna a terra mais importante do que a floresta), se tornam uma reserva de valor certa para os especuladores. Por isso, em momentos de crise, a grilagem e o desmatamento crescem, porque a Amazônia é uma reserva do país, sobretudo dos grupos poderosos que têm dinheiro para investir e manter grandes áreas como instrumentos de especulação imobiliária e financeira. Então, o que precisa ser feito é moralizar o registro de terras que até hoje, apesar dos avanços tecnológicos, continua precário. Os cartórios, por exemplo, fazem o que querem.

IHU On-Line – Se as terras em questão pertenciam ao patrimônio público, porque o dono da Construtora C.R. Almeida se disse ofendido por ser chamado de “pirata fundiário”? Ou seja, chamar grileiro de grileiro é crime?
Lúcio Flávio Pinto – Ele está na lógica dele. Ele quer um pretexto para me intimidar, para me calar, já que comprar, ele não podia. Então, ele inventou essa história. Não deu certo em São Paulo, mas deu certo em Belém. Então, ele tentou e se deu bem. As conexões mostram que foi uma conspiração real e que o objetivo dele era de que não interessasse o que eu estava dizendo, eu seria condenado. E para isso ele usou do seu poder. E não é só um poder que veio do fato de ele ter 1,90m de altura, ou por ele ser um sujeito agressivo, mas é o poder do dinheiro. A fortuna do grupo C.R. Almeida hoje está calculada em 5 bilhões de dólares.

IHU On-Line – Como você se sente, pessoalmente, como cidadão e jornalista brasileiro, diante do episódio?
Lúcio Flávio Pinto – Quando eu vi a decisão do STJ, fiquei perplexo, desanimado, com vontade de ir embora do Brasil, porque mesmo em uma democracia houve o abuso do poder econômico. Mas depois decidi reagir e de uma forma que eles não esperavam, pois acharam que eu ia continuar preso ao processo. Resolvi ultrapassá-lo, sabendo dos riscos de perder a primariedade e de pagar a indenização. Então, estou perfeitamente consciente: vou pagar o preço por tentar mobilizar a sociedade, por tentar fazer com que ela perceba que não é um problema individual, mas um problema social grave o que eu estou enfrentando.

IHU On-Line – Como está a situação atual de Belo Monte e do rio Xingu? Quais os desafios atuais a serem enfrentados na região diante da construção da hidrelétrica?
Lúcio Flávio Pinto – Eles estão fazendo a mesma coisa que foi feita em Jirau, no rio Madeira: estão criando fatos consumados. Até a multa que o Ibama aplicou à Norte Energia, ao consórcio que está construído, nos faz pensar se é para valer ou se é como um “banho de piranha”, para desviar a atenção, porque a multa é excessiva, não se justifica ao delito que eles cometeram, que é simples. O governo está sendo rigoroso e o resultado concreto disso é que os fatos vão avançando. Hoje já é difícil colocar em questão se Belo Monte será construída ou não. Parece que agora vai mesmo ser construída. No entanto, o que se pode fazer para atenuar os problemas? Acho que essa é uma questão que ainda ninguém examinou com rigor, porque não se tem uma visão completa da situação. Talvez esta seja a linha de transmissão mais cara da história do Brasil. Vai representar uns 60% do custo da obra de geração. Então, o grande desafio para Belo Monte não é construir, pois eles vão construir de qualquer maneira, mas é o dia seguinte. Quanto irá custar? Qual será o prejuízo? Qual será o subsídio? O governo do PT sempre foi contra a privatização, sempre acusou o PSDB de colocar o Estado a serviço dos interesses particulares. No entanto, a atual grande marca do governo do PT são as grandes obras, que continuaram desde o regime militar sem mudar nada, incluindo o dinheiro do BNDES e o tesouro nacional. As hidrelétricas anteriores não tinham esse esquema. Então, o caminho será o de questionar quem vai pagar essa conta e de quanto será, para atender ao desejo impulsivo e compulsivo de construir Belo Monte.