A casa nossa de cada dia!
É
preciso que a pessoa se lance no centro, no coração, no ponto em que tudo se
origina e toma sentido: e eis que se reencontra a palavra esquecida ou
reprovada, a alma. (René Huyghe)
Para Gaston Bachelard ‘a casa é o nosso canto no mundo’.
Complemento dizendo que existem infinitos tipos de casas e de maneiras de
habitá-las. Em Palmas/TO a casa é para quem pode pagar por ela, avultosas somas
mensais. Para os nobres! Há uma clara e precisa divisão de mundos com as suas
casas próprias. Isto ficou muito claro na ação de ocupação de uma quadra do
plano diretor sul da cidade, o movimento de ocupação composto por cerca de 300
famílias na tentativa de obter para si a dignidade deste universo, desse cosmo.
Ou ainda como diria o filósofo: um cosmos em toda a acepção do termo, foi
violentamente rechaçado, o estado e a sua máquina mortífera, chamada polícia,
agiu de pronto para não permitir aos que não são nobres, a poética do espaço!
Me sirvo aqui
desta conversação com Bachelard, para falar de um tipo de casa muito particular,
da nossa morada original, o local mais protegido: o útero. Foi com o meu útero
que senti a dor de Eutália Barbosa, ao ver seu filho apanhando do estado. Este
mesmo que deveria nos proteger! Para ele, seu primeiro vínculo no universo da
casa. Ato contínuo o filho na tentativa de proteger a mãe, a sua morada
metafórica, apanha e segue algemado, sujo de barro! Deste mesmo barro que
buscou conquistar para outros, ele mesmo tem casa. Ele, que tem a casa como
direito universal, como um princípio de moradia, de lugar no mundo. Que sabe a
importância da solidariedade para construir uma sociedade justa. Apanhou, foi
exposto na carroceria de um carro de polícia! Seu irmão assistia a tudo tomado
pelo desespero. Na tentativa de resolver foi acusado de desacato! Foi também
levado. Agindo assim todas as pessoas com vínculos institucionais fortes e
relações com aqueles que poderiam agir em defesa das famílias sem teto foram
retirados do cenário.
A vizinhança
assistia a tudo indiferente ou revoltada pela presença dos indesejáveis entre
eles. Quem são essas pessoas e seus filhos? Quem são esses impróprios para o
convívio? A polícia por motivação também imobiliária ostentava o seu aparato
bélico. E a casa ficava cada vez mais distante. Escapava como de resto tudo, para
as pessoas que tem pouco ou quase nada. Contudo, não faltou companheirismo,
vontade, coletividade para aqueles que estavam de pé as três horas da manhã,
antecipando o dia, capinando os prováveis lotes, afagando o sonho da casa
própria. Pensando como Manoel de Barros: “Para apalpar
as intimidades do mundo é preciso saber:/Que o esplendor da manhã não se abre
com faca”.
A
abordagem abriu um buraco em mim, que assisti a tudo sem nada poder fazer, eu
mesma que não tenho casa! Eu mesma que me sinto não pertencer! Não habitar! Agora
não consigo esquecer a Carolina Maria de Jesus e o seu Quarto de Despejo, em
que dizia: O maior
espetáculo do pobre da atualidade é comer.
Juliete Oliveira – sem teto
Palmas/TO, 16 de setembro de 2019
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