Enquanto não houver uma mudança radical, o próprio sentido de  educação estará comprometido, posto que seu fim mais elementar não é  atingido: em vez de promover a emancipação humana, produz lucro para o  capital que só enxerga as camadas sociais C, D e E quando estas se  apresentam como potencial mercado consumidor.
O ensino  superior, público e privado, no Brasil passou por grandes transformações  nas últimas décadas. Essas mudanças – travestidas de democratização,  por favorecerem o acesso – visaram atender a uma proposta de  privatização e barateamento da educação.
O Ministério da Educação  (MEC) alardeia números, sobretudo para organismos internacionais – que  obrigam o país a se enquadrar em padrões estipulados por eles na  competição do mercado de consumo, trabalho e pesquisa –, que demonstram o  crescimento do acesso ao ensino superior, ainda que distantes daqueles  objetivados pelo Plano Nacional de Educação (PNE) (o acesso é de apenas  13,8% dos jovens, entre 18 e 24 anos). Porém, esse suposto processo de  inclusão tem facilitado, para além do aceitável, um crescimento  vertiginoso das instituições de ensino superior (IES) privadas, com  desdobramentos que passam pela precarização do trabalho docente e pela  formação duvidosa que essas empresas têm oferecido aos alunos por ela  formados.
A predominância de objetivos economicistas em detrimento  dos pedagógicos nas IES privadas permitiu um fenômeno relativamente  novo no Brasil: a formação de conglomerados educacionais, grandes  empresas, de capital aberto e com forte participação de grupos  estrangeiros em seu quadro de acionistas. A autorização para  funcionamento dessa espécie de oligopólio do setor educacional tem  intensificado a visão mercantil da educação superior no Brasil. Os  exemplos mais representativos desse modelo de organização empresarial na  educação ficam por conta dos grupos educacionais Kroton-Pitágoras,  Estácio de Sá, SEB (Sistema Educacional Brasileiro) e Anhanguera  Educacional. Esta última, com a recente aquisição da Uniban, passou a  ser o maior grupo educacional do país, atendendo aproximadamente 400 mil  alunos em campi espalhados por diversos estados brasileiros. Além  disso, manteve sua projeção de crescimento de atingir 1 milhão de  estudantes em cinco anos, segundo matéria do Valor Econômico de 17 de  novembro de 2011.
A alteração no padrão de financiamento das IES  privadas promoveu uma mudança significativa no modelo de gestão: o papel  que antes era predominantemente exercido por mantenedoras, de caráter  familiar ou religioso, hoje passou a ser de responsabilidade de bancos  ou fundos de investimentos que contratam executivos como seus  representantes, padronizam procedimentos de relações de trabalho nos  departamentos de recursos humanos e prestam contas ao fundo de ações.  Decorre daí um perfil de gestão alinhavado com a lógica empresarial, sob  responsabilidade de executivos, e muito distante dos objetivos  educacionais que sempre foram sustentados por professores e  pesquisadores.
Abandono do Estado
Tomado pela óptica do  lucro, o setor educacional privado tem se valido, oportunamente, do  abandono do Estado na oferta de vagas públicas para a formação superior.  Dessa forma, as IES privadas, cuja existência deveria ter um caráter  complementar, acabaram predominando e se consolidando em grupos que  formulam e ditam as regras de seu interesse para a (des)regulamentação  do setor, regras essas beneficiadas pelas chamadas políticas de  parcerias público-privadas, as quais são alicerçadas sobre o princípio  da transferência de dinheiro público para a iniciativa privada com a  finalidade de que esta última cumpra o papel que o Estado se nega a  exercer. No caso do ensino superior, essas transferências se dão  predominantemente por meio do Programa Universidade para Todos (ProUni) e  do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), além  dos programas de benefícios de isenção fiscal oferecidos pelo BNDES.  Nesse ponto, o discurso falacioso do Estado e o do setor privado  convergem: trata-se de iniciativas e proposições que manifestam  concretamente a preocupação com a formação do brasileiro e com o  desenvolvimento do país!
De modo geral, a consolidação da  mercantilização da educação e a formação de oligopólios educacionais têm  ocorrido com base na incorporação de princípios e fundamentos do setor  empresarial, ou seja, na otimização dos recursos. Como afirma Marilena  Chauí (2001), “a Universidade está estruturada segundo o modelo  organizacional da grande empresa, isto é, tem o rendimento como fim, a  burocracia como meio e as leis do mercado como condição”. Essa fórmula –  clássica do neoliberalismo – consiste na diminuição das despesas para o  consequente aumento dos lucros. Assim, com vistas a assegurar um perfil  rentável − à empresa, é claro −, torna-se necessária a precarização das  relações de trabalho: redução de salários, perda de direitos, ameaças e  cobranças pelo desempenho da instituição nas avaliações externas  promovidas pelo MEC são alguns traços da rotina de professores das IES  privadas.
Ao mesmo tempo, concorre para intensificar os contornos  dramáticos desse quadro a expansão da modalidade EaD (educação a  distância), que em 2010 fechou o ano com 973 mil alunos matriculados, o  que corresponde a 30% de todos os universitários em instituições  privadas. Nesse caso, a educação mediada pela tecnologia, que deveria  servir para aproximar os extremos sociais, acaba por aprofundá-los.  Contudo, para os empresários, o aliciamento desse recurso é tomado como  mais uma vantagem mercadológica capitalista, sobretudo por potencializar  sua capacidade de lucro.
Na outra ponta, os salários praticados  nas IES privadas são – via de regra – aviltantes, o que obriga muitos  profissionais a lecionar em várias instituições, seja para compor a  renda, seja para se prevenir das demissões, muitas vezes arbitrárias.  Nesse contexto, os professores se veem impedidos de desempenhar tarefas  diretamente ligadas à sua função (e ao ensino superior, ou seja, ensino,  pesquisa e extensão), absorvidos que estão por uma jornada de trabalho  extenuante. No entanto, paralelamente a isso, ocorre um processo  silencioso de captura da subjetividade dos docentes com objetivo de  estabelecer uma competição interna, cuja face mais alarmante é a perda  da autonomia. Como toda competição tem exigências, impõe-se que esses  profissionais – para terem condição de competir – sejam aguerridos,  “pró-ativos”, competentes e indiferentes às questões coletivas, o que os  leva a um distanciamento de seus sindicatos e associações e permite,  muitas vezes, que sejam – deliberadamente – vistos como mão de obra  manipulável pelos patrões.
Precarização e intimidação
Se de  um lado temos a perda da autonomia dos professores como uma ameaça à  própria noção de função docente, de outro notamos que, por parte dos  empresários da educação, a oferta de uma formação aligeirada tem exigido  profissionais cada vez menos críticos e progressivamente mais alienados  da prática educativa. Não é raro o relato de professores do ensino  superior que têm seus conteúdos – planos e ementas de cursos –, bem como  suas avaliações, elaborados por um terceiro que nunca sequer esteve em  uma sala de aula. Essa tentativa, por parte dos patrões, de padronizar a  prática pedagógica para garantir um rendimento mínimo nas avaliações  externas evidencia de maneira cabal seu propósito de controle absoluto  sobre a mercadoria que vendem.
Dessa forma, a reação e a  resistência a essa prática de mercantilização da educação impõem grandes  desafios. No estado de São Paulo, que acompanhamos mais de perto, tem  sido cada vez mais difícil o enfrentamento com os patrões do ensino  superior nas campanhas salariais organizadas por nossa federação, a  Fepesp (Federação dos Profissionais de Educação do Estado de São Paulo),  pois há um evidente conflito nas pautas apresentadas para negociação.  Do lado de lá, a ofensiva é para subtrair direitos historicamente  conquistados e que, vistos com a luneta do capital, representam entraves  normativos à expansão dos lucros. Em razão disso, questões como plano  de carreira, regulamentação da EaD e aumento real são deliberadamente  ignoradas pelos patrões, que, por sua vez, promovem lobbiesjunto ao  Poder Legislativo, a fim de que as regras do setor continuem a  beneficiá-los.
Entretanto, a predominância de valores empresariais  na organização das IES e a falta de regulamentação efetiva por parte do  MEC têm imposto uma permanente ameaça, ainda que velada, que é o  desemprego. Assim, os professores insatisfeitos com salários e condições  de trabalho incorporam a responsabilidade incutida pelo patrão, de que o  mercado funciona assim: os insatisfeitos que se mudem. A aceitação  dessa ideia leva a um comportamento defensivo, porque nos faz crer que  nada pode ser feito e, por isso mesmo, qualquer iniciativa coletiva deve  ser vista como prejuízo ao próprio trabalhador.
Há também que se  ressaltar a necessidade urgente de que o debate sobre a educação seja  tomado como fundamento para um crescimento qualitativo e efetivo do  Brasil, sobretudo para a população que ainda anseia conhecer na prática a  longo prazo esse crescimento. Para validarmos o princípio democrático  do direito à educação, sem, contudo, ignorar que o mercado do ensino  privado não arrefecerá a curto prazo, precisamos assegurar o  investimento de 10% do PIB na educação pública – que estimamos universal  e de qualidade –, a fim de que ela seja o referencial para o setor  privado, e não o contrário.
Enquanto não houver uma mudança  radical nesse quadro, o próprio sentido de educação estará comprometido,  posto que seu fim mais elementar não é atingido: em vez de promover a  emancipação humana, produz lucro para o capital que só enxerga as  camadas sociais C, D e E quando estas se apresentam como potencial  mercado consumidor.
A forte presença do controle corporativo em um  setor essencial como a educação provoca sérias fissuras na malha  social, na medida em que os desdobramentos da transferência tácita da  responsabilidade do Estado para a iniciativa privada têm autorizado o  funcionamento de fábricas de diplomas com certificação vazia, para uma  população que, embriagada pela democratização do acesso, ainda não se  sabe enganada.
** Publicado originalmente no site Le Monde Diplomatique.
(Le Monde Diplomatique)
Imagem: Gordon Matta Clark

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