terça-feira, 15 de junho de 2010

A desgraçada profissão de economista, por James Galbraith




Sr. Presidente, Srs. Membros do Subcomité, como antigo membro da assessoria do Congresso é um prazer submeter esta declaração à vossa consideração.


Escrevo-lhes vindo de uma profissão desgraçada. A teoria económica, como é amplamente ensinada desde a década de 1980, fracassou miseravelmente no entendimento das forças que estão por trás da crise financeira. Conceitos que incluem "expectativas racionais", "disciplina de mercado" e a "hipótese dos mercados eficientes" levaram economistas a argumentar que a especulação estabilizaria preços, que os vendedores actuariam para proteger as suas reputações, que se podia confiar no caveat emptor [1] e que portanto a fraude generalizada não podia ocorrer. Nem todos os economistas acreditaram nisto – mas a maior parte sim.

Consequentemente, o estudo da fraude financeira recebeu pouca atenção. Não existe praticamente nenhum instituto de investigação; a colaboração entre economistas e criminólogos é rara; nos principais departamentos há poucos especialistas e muito poucos estudantes. Os economistas minimizaram o papel da fraude e todas as crises que examinaram, incluindo a derrocada das Caixas Económicas (Savings & Loans), a transição russa, o colapso asiático e a bolha das dot.com. Eles continuam a minimizar até hoje. Numa conferência patrocinada pelo Levy Economics Instituto, em Nova York, a 17 de Abril, o mais perto que um antigo sub-secretário do Tesouro, Peter Fischer, chegou a esta questão foi utilizar a palavra "travessuras" (naughtiness"). Isto foi no dia em que a Securities and Exchange Comission (SEC) acusou a Goldman Sachs de fraude.

Há excepções. Um famoso artigo de 1993 intitulado "Saqueio: bancarrota para o lucro" ("Looting: Bankruptcy for Profit"), de George Akerlof e Paul Romer, baseava-se excepcionalmente na experiência de reguladores que entendiam de fraude. O criminólogo-economista William K. Black, da Universidade de Missouri-Kansas City é o nosso principal analista sistemático do relacionamento entre crime financeiro e crise financeira. Black destaca que a fraude contabilística é uma coisa segura quando você pode controlar a instituição em que entrou: "o melhor meio de roubar um banco é possuí-lo". A experiência da crise das Caixas Económicas foi de empresas capturadas com o propósito explícito de depená-las, de sangrá-las até secarem. Isto foi estabelecido em tribunal: havia mais de um milhar de condenações por crime na sequência daquela derrocada. Outras crónicas úteis da moderna fraude financeira incluem "Cova de ladrões" (Den of Thieves) , de James Stewart, sobre a era Boesky-Milken, e "Conspiração de loucos" (Conspiracy of Fools) , de Kurt Eichenwald, sobre o escândalo Enron. Mas subsiste um vasto fosso entre esta história e a análise formal.

A análise formal conta-nos que o controle de fraudes segue certos padrões. Elas crescem rapidamente, relatando alta lucratividade, certificada por firmas de contabilidade de topo. Elas pagam excessivamente bem. Ao mesmo tempo, elas reduzem padrões radicalmente, construindo novos negócios em mercados anteriormente considerados demasiado arriscados para negócios honestos. No sector financeiro, isto assume a forma de descontraídas – não, estripadas – subscrições, combinadas com a capacidade de passar o último tostão para o louco maior. Na Califórnia, na década de 1980, Charles Keating percebeu que um alvará de Caixa Económica era uma "licença para roubar". Nos anos 2000, a origem das hipotecas sub-prime foi em grande parte a mesma coisa. Dada uma licença para roubar, os ladrões começam a trabalhar. E porque o seu desempenho parece tão bom, eles rapidamente vêm a dominar os seus mercados; os maus jogadores expulsam os bons.

A complexidade do sector hipotecário-financeiro antes da crise destaca uma outra marca característica da fraude. No sistema desenvolvido, os documentos originais da hipoteca jazem enterrados – quando permanecem – nos registos dos originadores do empréstimo, muitos deles extintos desde então ou tomados por terceiros. Aqueles registos, se examinados, revelariam a extensão da documentação em falta, das práticas abusivas e da fraude. Até agora, temos apenas uma evidência muito limitada sobre isto, notavelmente um estudo de 2007 da Fitch Ratings sobre uma amostra muito pequena de RMBS [2] altamente taxadas, as quais descobrem "fraude, abuso ou documentação omissa em virtualmente todo ficheiro". Esforços feitos um ano atrás pelo deputado Doggett para persuadir o secretário Geithner a examinar e informar a fundo a extensão da fraude nos registos subjacentes às hipotecas foram totalmente torneados.

Quando hipotecas sub-primes foram empacotadas e titularizadas, as agências de classificação deixaram de examinar a qualidade do empréstimo subjacente. Ao invés disso substituíram [o exame] por modelos estatísticos, a fim de gerar classificações que fariam as RMBS resultantes aceitáveis para os investidores.

Quando alguém assume que os preços sempre subirão, segue-se que um empréstimo titularizado pelos activos sempre pode ser refinanciado; portanto a condição real do tomador do empréstimo não importa. Aquela projecção é, naturalmente, apenas tão boa como a suposição subjacente, mas neste mercado concebido de forma perversa aqueles que pagam pelas classificações não têm razões para se importarem com a qualidade das suposições. Enquanto isso, agora os originadores de hipotecas têm uma fórmula para oferecer empréstimos aos piores tomadores que pudessem encontrar, seguros de que neste Lake Wobegon [3] invertido nenhuma criança seria considerada abaixo da média embora todas estivessem. A qualidade do crédito entrou em colapso porque o sistema foi concebido para ir para o colapso.

Um terceiro elemento na mixórdia tóxica foi um simulacro de "seguro", proporcionado pelo mercado em credit default swaps. Estes são instrumentos do juízo final num sentido preciso: eles geram fluxo de caixa para o emissor até que ocorra o evento de crédito. Se o evento for suficientemente grande, o emissor então falha, ponto em que o governo enfrenta chantagem: ele deve intervir ou o sistema entrará em colapso. Os CDS propagam as consequências de uma baixa nos preços das habitações por todo o sector financeiro, por todo o globo. Eles também proporcionam os meios para provocar curto-circuito no mercado de títulos apoiados por hipotecas residenciais, de modo que os maiores jogadores poderiam virar as costas e apostar contra os instrumentos que haviam previamente estado a vender, pouco antes de o castelo cartas entrar em crash.

Nos tempos actuais a teoria económica das finanças é cega a tudo isto. Ela necessariamente trata acções, títulos, opções, derivativos e assim por diante como títulos cujas propriedades podem ser aceites amplamente pelo seu valor facial e quantificadas em termos de retorno e de risco. Aquela quantificação permite o cálculo do preço, utilizando fórmulas padrão. Mas tudo na fórmula depende de os instrumentos serem o que são representados para ser. Pois se não o forem, então que fórmula poderia possivelmente aplicar-se?

Uma tendência mais antiga da teoria económica institucional entendia que um título é um contrato legal. Ele só podia ser tão bom quanto o sistema legal que estava atrás dele. Alguma fraude é inevitável, mas num sistema em funcionamento ela deve ser rara. Ela deve ser considerada – e correctamente – um problema menor. Se a fraude – ou mesmo a percepção da fraude – chega a dominar o sistema, então não há fundamento para um mercado de títulos. Eles tornam-se lixo. E mais profundamente, do mesmo modo as instituições responsáveis por criá-los, classificá-los e vendê-los. Incluindo, enquanto falhar em responder com a força apropriada, o próprio sistema legal.

Fraudes controladas sempre falham no fim. Mas o fracasso da firma não significa que a fraude tenha falhado: os perpetradores muitas vezes fogem ricos. Em algum momento, isto exige subverter, subornar ou vencer a lei. É aqui que o crime e os políticos se interceptam. No seu cerne, a crise financeira foi uma ruptura da regra da lei na América.

Perguntem-se a si próprios: será possível para originadores de hipotecas, agências de classificação, subscritores, seguradores e agências de supervisão NÃO terem sabido que o sistema financeiro de habitação tornara-se infestado de fraudes? Todo indicador estatístico de prática fraudulenta – crescimento e lucratividade – sugere o contrário. Até agora todo exame dos registos sugere o contrário. A própria linguagem em uso: "empréstimos mentirosos", "empréstimos ninja", "empréstimos neutrões" e "lixo tóxico" diz-lhe que as pessoas sabiam. Também ouvi a expressão "IBG,YBG", o significado desse código era: "Eu darei o fora, você dará o fora" ("I'll be gone, you'll be gone").

Se dúvidas subsistissem, a investigação dentro das comunicações internas das firmas e agências em causa pode esclarecê-las. Os emails são reveladores. O governo já possui pegadas documentais críticas – aquelas da AIG, Fannie Mae de Freddie Mac, o Departamento do Tesouro e a Reserva Federal. Esses documentos deveriam ser investigados, completamente, pela autoridade competente e também divulgados, quando apropriado, ao público. Por exemplo: será que intencionalmente a AIG emitiu CDSs contra instrumentos que a Goldman havia concebido em nome do sr. John Paulson para fracassar? Se assim for, por que? Ou outra vez: Será que a Fannie Mae e o Freddie Mac apreciaram a fraca qualidade das RMBSs que estavam a adquirir? Será que assim o fizeram sob a pressão do sr. Henry Paulson? Se assim for, será que o secretário Paulson sabia? E se o fez, por que ele actuou assim? Num documento recente, Thomas Ferguson e Robert Johnson argumentam que a "Opção Paulson" foi destinada a adiar uma crise inevitável para depois das eleições. Será que os registos internos confirmam esta visão?

Vamos supor que a investigação que estão prestes a começar confirme a existência de fraude generalizada, envolvendo milhões de hipotecas, milhares de avaliadores profissionais, subscritores, analistas e os executivos das companhias nas quais eles trabalhavam, bem como responsáveis públicos que a isso assistiam fechando os olhos. O que será a resposta apropriada?

Alguns parecem acreditar que a "confiança nos bancos" pode ser reconstruída por uma nova rodada de boas notícias económicas, pela ascensão dos preços das acções, pelas novas promessas de altos responsáveis – e pelo não olhar demasiado atentamente para a evidência subjacente de fraude, abuso, engano e burla. Ao prosseguirem vossas investigações, minarão, e acredito que possam destruir, tal ilusão.

Mas você tem de actuar. A alternativa verdadeira é uma fracasso a estende-se ao longo to tempo do sistema económico ao político. Da mesma forma como muitos poucos previram a crise financeira, pode ser que muito poucos estejam hoje a falar francamente acerca de onde um fracasso em tratar das consequências pode levar.

Nesta situação, deixem-me sugerir que o país enfrenta uma ameaça existencial. Ou o sistema legal deve fazê-lo funcionar. Ou o sistema de mercado não pode ser restaurado. Deve haver uma limpeza completa, transparente, efectiva e radical do sector financeiro e também daqueles responsáveis públicos que traíram a confiança pública. Aos financeiros deve-se fazê-los sentir, nos seus ossos, o poder da lei. E o público, o qual vive de acordo com a lei, deve ver muito claramente e sem ambiguidades que isto é o caso.

Muito obrigado.

18/Maio/2010

[1] caveat emptor: regra nas leis dos contratos determinando que o vendedor não garante a qualidade de sua mercadoria sem um compromisso especificado.
[2] RMBS: Residential mortgage-backed security

[3] Lake Wobegon : cidade fictícia no estado do Minnesota.
Texto de declaração escrita apresentada pelo autor ao Comité Judiciário do Senado dos Estados Unidos.

"Retirado do Blogspot pimentanegra"

terça-feira, 25 de maio de 2010

a compu (ta) linguagem

Um filósofo e sua mulher num jantar... Sua ambição é determinar, com o uso de máquinas elétricas de computação, a estrutura básica da linguagem. Os valores e as evocações das palavras podem ser determinadas, ele me diz, pelos equipamentos, e assim poemas de qualidade podem ser escritos por máquinas. Portanto, retornamos à absolescência dos sentimentos. Penso na minha maneira de sentir a linguagem, sua intimidade, seus mistérios, seu poder de evocar, numa pronúncia catarral, os ventos marítimos que sopram sobre Veneza ou, num A mais duro, o maciço para além de Kitzbühel. Mas isso, ele me diz, é apenas sentimentalismo. A importância dessas máquinas, sua tendência para legislar, para calibrar palavras como “esperança”, “coragem”, todos os termos que usamos para alimentar o espírito.

John Cheever escreveu esse texto lá pelos anos de 1950, muito antes de os computadores terem se tornado apenas mais um acessório doméstico, e mesmo antes de terem ganhado um nome específico. A arrogância reducionista do filósofo e a resposta indignada do autor são reações contrapostas a uma verdade simples, que ainda hoje é válida: escrita informativa e escrita criativa são formas diferentes de conhecimento, exigindo diferentes habilidades e relações com a linguagem totalmente diferentes.

A. Alvares, A voz do escritor

sexta-feira, 7 de maio de 2010

O que tem a Gisele com a floresta em pé?


Triste de quem é feliz.
Fernando Pessoa


A governamentalidade passa, dentre outras estratégias de subjetivação-dessubjetivação, por encarnar a função que o gozo decepcionante das sociedades espetaculares e de consumo não podem encampar completamente: uma máquina de fazer sorrir. A isto atribuímos a presença da Mega, Ultra, Super Top Model Gisele Bündchen‎ na Comissão Especial do Código Florestal. Desde os gregos, a felicidade foi convertida em tarefa da política, mas a felicidade sem possibilidade de pensamento não pode ser mais que um gozo, um sentimento reativo: não pode nada, senão permanecer no continuum desse gozo. A felicidade, aferida segundo as formas de vida governamentais, normais ou desviantes – pouco importa – implica, em verdade, uma das realizações finais da biopolítica: separando a vida da forma de vida, sacraliza-se não apenas a vida, mas também a forma que essa vida pode assumir; interdita-se o próprio acesso à política, à comunidade, à felicidade.


Discutir o Código Florestal passou a ser tarefa das beldades muito acima dos mínimos padrões que costumam guiar a vida das pessoas “normais” – é preciso ter porte, elegância e um grau de consumo altíssimo – e mais, muito mais: influenciar esse consumo, trabalhar em favor da máquina de produção de felicidade capitalista! Tudo a favor do modelo de Estado de bem-estar social (Welfare State), uma incumbência das políticas governamentais. Propiciar e zelar pelo bem-estar psicológico, a satisfação e conforto em relação à própria vida, é tarefa política, mas não deixa de ser uma das mais atuais estratégias de subjetivação-dessubjetivação dos governos e dos grupos de poder. A despeito de qualquer coisa a engrenagem não pode parar e o índice que mede a felicidade deve ser mantido, o FIB (Felicidade Interna Bruta). Mas felicidade de quem?


Certamente que não aqueles que terão o seu local de vivência, moradia, produção e reprodução dessa subjetividade, franqueado por um Código escrito por estrelas de constelações estranhas ao mundo real. O que saberá a rica Top das quebradeiras de coco do cerrado brasileiro? Da colheita diária do açaí e da piaçava na aurora amazônica? Com certeza pouco, muito pouco. Ainda que se venha discutindo exaustivamente a participação dos principais interessados nas questões que envolvem a floresta em pé, quase nada vem acontecendo na prática – talvez porque os principais interessados de que o Código Florestal não passe de uma receita de cosmético prescrita para “embelezar” o assombro do desmatamento sejam, finalmente, os grandes proprietários de terra, o agronegócio, as mineradoras e todos os que movimentam a bufunfa e riscam a floresta do mapa.


Juliete Oliveira

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Ne me quitte pas



Ne me quitte pas Não me deixes,
Il faut oublier É preciso esquecer
Tout peut s'oublier Tudo se pode esquecer
Qui s'enfuit déjà o que já se foi ( para trás ficou trás)
Oublier le temps Esquecer o tempo
Des malentendus dos mal-entendidos
Et le temps perdu E o tempo perdido
À savoir comment a querer saber como
Oublier ces heures Esquecer essas horas,
Qui tuaient parfois Que de tantos porquês
À coups de pourquoi Por vezes matavam (a golpes de porquês)
Le coeur du bonheure o coração da felicidade
Ne me quitte pas (x4) Não me deixes
Moi je t'offrirai Te oferecerei
Des perles de pluie Pérolas de chuva
Venues de pays Vindas de países
Où il ne pleut pás onde nunca chove
Je creuserai la terre eu cruzarei a terra
Jusqu'après ma mort Até depois da morte,
Pour couvrir ton corps para cobrir teu corpo
D'or et de lumière de ouro e luzes
Je ferai un domaine Eu farei um domínio(Criarei um país)
Où l'amour sera roi onde o amor será rei
Où l'amour sera loi onde o amor será lei
Où tu seras reine onde tu serás rainha
Ne me quitte pas Não me deixes

Ne me quitte pás Não me deixes
Je t'inventerai Eu inventarei
Des mots insensés palavras insentatas
Que tu comprendras que tu compreenderás
Je te parlerai Eu te falarei
De ces amants là desses amantes
Qui ont vu deux fois que viram,duas vezes
Leurs coeurs s'embrasser seus corações se abraçarem
Je te raconterai Eu te recontarei
L'histoire de ce roi a história desse rei
Mort de n'avoir pás morto por não ter
Peu te rencontrer podido te reencontrar
Ne me quitte pas (x4) Não me deixes

On a vu souvent Onde se viu
Rejaillir le feu reacender o fogo
De l'ancien volcan do velho vulcão
Qu'on croyait trop vieux que se acreditava ser muito velho
Il est paraît-il Até parece
Des terres brûlées de terras queimadas
Donnant plus de blé produzindo mais trigo
Qu'un meilleur avril que o melhor abril
Et quand vient le soire e quando vem a tarde
Pour qu'un ciel flamboie para que o céu flambe
Le rouge et le noir o vermelho e o negro
Ne s'épousent-ils pás se casam
Ne me quite pas (x4)

Ne me quite pas
Je ne veux plus pleurer eu não vou mais chorar
Je ne veux plus parler eu não vou mais falar
Je me cacherai là eu me esconderei
À te regarder para te olhar
Danser et sourire dançar e sorrir
Et à t'écouter e te escutar
Chanter et puis rire cantar e depois rir
Laisse-moi devenir deixe-me tornar
L'ombre de ton ombre a sombra de tua sombra
L'ombre de ta main a sombra de tua mão
L'ombre de ton chien a sombra do teu cão
Ne me quitte pas não me deixes

Compositor(es): Jacques Brel/Louigy/Gilbert Becaud/Charles Aznavour/Pierre Delanoë/Francoise Dorin/Edith

terça-feira, 4 de maio de 2010

Hexagrama


tomo emprestado um verso
como podes conhecer tão bem o escuro
nunca mais romance nunca mais cinema
trigramas arrancados à unha
tigre às avessas, árvore na montanha
o movimento que tende a descer
prepara nova primavera
nossa pequena parte, o rio é a estrada
sequer é alegre, destino semelhante experimento
entra como o obus envenenado
antes que a solidão nos venha buscar


Juliete Oliveira
Palmas 04 de maio 2010

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Belo Monte ou um mau poema de primavera


Ubiratan Cazetta milita no grupo dos que organizam o pessimismo, não o pessimismo descomprometido, mero desleixo com o coletivo, mas o contrário ao “grosseiro otimismo” dos que avançam solícitos rumo ao capital, aqueles que se agarram a uma época de nulidades e desventuras, no entanto, uma época de “compromissos”. Cazetta não se deixa inspirar pela ideologia do progresso linear, descobre no pessimismo um ponto de convergência efetiva para a proteção dos direitos difusos, em aliança com o pessimismo ativo, organizado, prático, inteiramente dedicado a impedir a chegada do pior.

É deste tipo de pessimista que o Brasil precisa, sobretudo o norte, a região amazônica - que se manifesta de maneira imediata mcontra os empreendimentos mal arquitetados pelos cérebros monstruosamente diminuídos, capazes de esquecer centenas de milhares de anos de história da técnica de hidrologia como ciência; capazes de minimizar todos os avanços da antropologia enquanto estudo no último século; que lançam por terra a tão bem elaborada Constituição Brasileira e as suas determinações do Estado Democrático e de Direito em nome da geração de alguns kilowatts de energia.

Que a organização do pessimismo impretada por tantas instituições, ainda que exaustas pela sucessão implacável dos "decisivos" fatos políticos, sigam combatendo o cortejo "triunfal" dos senhores de hoje sobre o corpo dos vencidos – índios, mulheres, negros, pequenos agricultores familiares, periferia dos pequenos municípios – e coloque fim à cegueira revestida de otimismo que estabelece um “estado de exceção" – grafado como tem que ser – para os direitos civis.

Cazetta sabe que a mudança de cenário físico se torna uma tormenta individual, além de coletiva, e que a relação entre vida e ambiente rui: o ambiente já não constitui mais uma referência estável para o destino variável das pessoas - desfaz-se com mais velocidade do que as lembranças e os hábitos, exigindo das pessoas um contínuo esforço de adaptação. Belo Monte representa a morte para uma série de espécies de fauna e flora, para uma representação geográfica única, e, talvez o mais absurdamente insuportável: para costumes e culturas de modus vivendi jamais apreendida pelo resto do país e do mundo.

Walter Benjamim rejeitou o culto moderno à Deusa Progresso, colocando no cerne da sua discussão filosófica o conceito de "catástrofe", sendo esta o contínuo da história, símile  e antítese de progresso.

Juliete Oliveira

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Crônica de uma tragédia anunciada

 Miro da Mangueira com bandeira de Hélio Oiticica - onde está a alegria?

Ao despertar hoje na tranquilidade do meu lar, sou mais uma vez abalada pelo pensamento de que a quietude da qual desfruto não se estende a todos, lembro imediatamente das condições em que se encontram centenas de famílias no Rio de Janeiro. John Stuart Mill, transcrito por Borges, trata da lei da casualidade em que argumenta que o estado do universo em qualquer instante é  uma consequência de seu estado anterior. Aqui também, somos tomados pelo sentimento de que parte do que aconteceu no Rio poderia ser evitado. Como? Perguntarão alguns...

Envolvendo-nos, evitando o hábito de pensar que o estado é uma inconcebível abstração, parando de ser apenas um indivíduo, sendo cidadão, querendo ainda o aforismo de Hegel, “O Estado é a realidade da idéia moral”. Não nos sentindo como Dom Quixote, para quem “cada um deverá se ocupar de seu pecado”. A cidade é o palco de todos, portanto responsabilidade comum. A política aristotélica é essencialmente unida à moral, porque o fim último do estado é a virtude, isto é, a formação moral dos cidadãos e o conjunto dos meios necessários para isso. O estado é um organismo moral, condição e complemento da atividade moral individual, e fundamento primeiro da suprema atividade contemplativa. A política, contudo, é distinta da moral, porquanto esta tem como objetivo o indivíduo, aquela a coletividade. A ética é a doutrina moral individual, a política é a doutrina moral social. Desta ciência trata Aristóteles precisamente na Política, de que acima se falou.

Ao Rio nos últimos dias. Recentemente vimos o Governador do Estado chorar em cadeia nacional, pelos ricos roytes do pré-sal, alguém viu o nobre homem derramar alguma lágrima diante das centenas de vidas que foram soterradas? Não apenas soterradas pela lama geologica, mas já soterradas há muito, pela falta de oportunidade, pela miséria, pela fome – a conspiração do silêncio – aqui é preciso citar Josué de Castro - para ele há uma perda muito grande de energias mentais nesse círculo de sustentação da elite a custa da exclusão de tantos. Não seriam as lágrimas do governador mais um ensaio do capitalismo democrático, o qual Deleuze classificou como “totalmente comprometido na fabricação da miséria humana”?

Esta é a consequencia da qual falou John Stuart Mill, a de um estado inerte, ou mais que isto, paralítico, débil, que amesquinha e despreza o indivíduo. A subida de Hélio Oiticica ao morro da Mangueira de certo se diferencia destes que hoje sobem como mensageiros da morte e do desastre, nas suas supostas ações políticas. Favelizam as cidades Brasil afora, com uma política que revigora o feio, o grotesco, a morte. Hélio é gás - Mangueira é árvore, estavam estabelecidas conexões, intensidades de um pensamento novo, não-pensado que as conveniências institucionais negligenciam descaradamente. Que urbanistas subam o morro, arquitetos, poder público -  para um trabalho que não cabe nem nunca coube à polícia.

Juliete Oliveira