retirado de: http://resistir.info/crise/galbraith_18mai10.html
Sr. Presidente, Srs. Membros do Subcomité, como antigo membro da assessoria do Congresso é um prazer submeter esta declaração à vossa consideração.
Escrevo-lhes vindo de uma profissão desgraçada. A teoria económica, como é amplamente ensinada desde a década de 1980, fracassou miseravelmente no entendimento das forças que estão por trás da crise financeira. Conceitos que incluem "expectativas racionais", "disciplina de mercado" e a "hipótese dos mercados eficientes" levaram economistas a argumentar que a especulação estabilizaria preços, que os vendedores actuariam para proteger as suas reputações, que se podia confiar no caveat emptor [1] e que portanto a fraude generalizada não podia ocorrer. Nem todos os economistas acreditaram nisto – mas a maior parte sim.
Consequentemente, o estudo da fraude financeira recebeu pouca atenção. Não existe praticamente nenhum instituto de investigação; a colaboração entre economistas e criminólogos é rara; nos principais departamentos há poucos especialistas e muito poucos estudantes. Os economistas minimizaram o papel da fraude e todas as crises que examinaram, incluindo a derrocada das Caixas Económicas (Savings & Loans), a transição russa, o colapso asiático e a bolha das dot.com. Eles continuam a minimizar até hoje. Numa conferência patrocinada pelo Levy Economics Instituto, em Nova York, a 17 de Abril, o mais perto que um antigo sub-secretário do Tesouro, Peter Fischer, chegou a esta questão foi utilizar a palavra "travessuras" (naughtiness"). Isto foi no dia em que a Securities and Exchange Comission (SEC) acusou a Goldman Sachs de fraude.
Há excepções. Um famoso artigo de 1993 intitulado "Saqueio: bancarrota para o lucro" ("Looting: Bankruptcy for Profit"), de George Akerlof e Paul Romer, baseava-se excepcionalmente na experiência de reguladores que entendiam de fraude. O criminólogo-economista William K. Black, da Universidade de Missouri-Kansas City é o nosso principal analista sistemático do relacionamento entre crime financeiro e crise financeira. Black destaca que a fraude contabilística é uma coisa segura quando você pode controlar a instituição em que entrou: "o melhor meio de roubar um banco é possuí-lo". A experiência da crise das Caixas Económicas foi de empresas capturadas com o propósito explícito de depená-las, de sangrá-las até secarem. Isto foi estabelecido em tribunal: havia mais de um milhar de condenações por crime na sequência daquela derrocada. Outras crónicas úteis da moderna fraude financeira incluem "Cova de ladrões" (Den of Thieves) , de James Stewart, sobre a era Boesky-Milken, e "Conspiração de loucos" (Conspiracy of Fools) , de Kurt Eichenwald, sobre o escândalo Enron. Mas subsiste um vasto fosso entre esta história e a análise formal.
A análise formal conta-nos que o controle de fraudes segue certos padrões. Elas crescem rapidamente, relatando alta lucratividade, certificada por firmas de contabilidade de topo. Elas pagam excessivamente bem. Ao mesmo tempo, elas reduzem padrões radicalmente, construindo novos negócios em mercados anteriormente considerados demasiado arriscados para negócios honestos. No sector financeiro, isto assume a forma de descontraídas – não, estripadas – subscrições, combinadas com a capacidade de passar o último tostão para o louco maior. Na Califórnia, na década de 1980, Charles Keating percebeu que um alvará de Caixa Económica era uma "licença para roubar". Nos anos 2000, a origem das hipotecas sub-prime foi em grande parte a mesma coisa. Dada uma licença para roubar, os ladrões começam a trabalhar. E porque o seu desempenho parece tão bom, eles rapidamente vêm a dominar os seus mercados; os maus jogadores expulsam os bons.
A complexidade do sector hipotecário-financeiro antes da crise destaca uma outra marca característica da fraude. No sistema desenvolvido, os documentos originais da hipoteca jazem enterrados – quando permanecem – nos registos dos originadores do empréstimo, muitos deles extintos desde então ou tomados por terceiros. Aqueles registos, se examinados, revelariam a extensão da documentação em falta, das práticas abusivas e da fraude. Até agora, temos apenas uma evidência muito limitada sobre isto, notavelmente um estudo de 2007 da Fitch Ratings sobre uma amostra muito pequena de RMBS [2] altamente taxadas, as quais descobrem "fraude, abuso ou documentação omissa em virtualmente todo ficheiro". Esforços feitos um ano atrás pelo deputado Doggett para persuadir o secretário Geithner a examinar e informar a fundo a extensão da fraude nos registos subjacentes às hipotecas foram totalmente torneados.
Quando hipotecas sub-primes foram empacotadas e titularizadas, as agências de classificação deixaram de examinar a qualidade do empréstimo subjacente. Ao invés disso substituíram [o exame] por modelos estatísticos, a fim de gerar classificações que fariam as RMBS resultantes aceitáveis para os investidores.
Quando alguém assume que os preços sempre subirão, segue-se que um empréstimo titularizado pelos activos sempre pode ser refinanciado; portanto a condição real do tomador do empréstimo não importa. Aquela projecção é, naturalmente, apenas tão boa como a suposição subjacente, mas neste mercado concebido de forma perversa aqueles que pagam pelas classificações não têm razões para se importarem com a qualidade das suposições. Enquanto isso, agora os originadores de hipotecas têm uma fórmula para oferecer empréstimos aos piores tomadores que pudessem encontrar, seguros de que neste Lake Wobegon [3] invertido nenhuma criança seria considerada abaixo da média embora todas estivessem. A qualidade do crédito entrou em colapso porque o sistema foi concebido para ir para o colapso.
Um terceiro elemento na mixórdia tóxica foi um simulacro de "seguro", proporcionado pelo mercado em credit default swaps. Estes são instrumentos do juízo final num sentido preciso: eles geram fluxo de caixa para o emissor até que ocorra o evento de crédito. Se o evento for suficientemente grande, o emissor então falha, ponto em que o governo enfrenta chantagem: ele deve intervir ou o sistema entrará em colapso. Os CDS propagam as consequências de uma baixa nos preços das habitações por todo o sector financeiro, por todo o globo. Eles também proporcionam os meios para provocar curto-circuito no mercado de títulos apoiados por hipotecas residenciais, de modo que os maiores jogadores poderiam virar as costas e apostar contra os instrumentos que haviam previamente estado a vender, pouco antes de o castelo cartas entrar em crash.
Nos tempos actuais a teoria económica das finanças é cega a tudo isto. Ela necessariamente trata acções, títulos, opções, derivativos e assim por diante como títulos cujas propriedades podem ser aceites amplamente pelo seu valor facial e quantificadas em termos de retorno e de risco. Aquela quantificação permite o cálculo do preço, utilizando fórmulas padrão. Mas tudo na fórmula depende de os instrumentos serem o que são representados para ser. Pois se não o forem, então que fórmula poderia possivelmente aplicar-se?
Uma tendência mais antiga da teoria económica institucional entendia que um título é um contrato legal. Ele só podia ser tão bom quanto o sistema legal que estava atrás dele. Alguma fraude é inevitável, mas num sistema em funcionamento ela deve ser rara. Ela deve ser considerada – e correctamente – um problema menor. Se a fraude – ou mesmo a percepção da fraude – chega a dominar o sistema, então não há fundamento para um mercado de títulos. Eles tornam-se lixo. E mais profundamente, do mesmo modo as instituições responsáveis por criá-los, classificá-los e vendê-los. Incluindo, enquanto falhar em responder com a força apropriada, o próprio sistema legal.
Fraudes controladas sempre falham no fim. Mas o fracasso da firma não significa que a fraude tenha falhado: os perpetradores muitas vezes fogem ricos. Em algum momento, isto exige subverter, subornar ou vencer a lei. É aqui que o crime e os políticos se interceptam. No seu cerne, a crise financeira foi uma ruptura da regra da lei na América.
Perguntem-se a si próprios: será possível para originadores de hipotecas, agências de classificação, subscritores, seguradores e agências de supervisão NÃO terem sabido que o sistema financeiro de habitação tornara-se infestado de fraudes? Todo indicador estatístico de prática fraudulenta – crescimento e lucratividade – sugere o contrário. Até agora todo exame dos registos sugere o contrário. A própria linguagem em uso: "empréstimos mentirosos", "empréstimos ninja", "empréstimos neutrões" e "lixo tóxico" diz-lhe que as pessoas sabiam. Também ouvi a expressão "IBG,YBG", o significado desse código era: "Eu darei o fora, você dará o fora" ("I'll be gone, you'll be gone").
Se dúvidas subsistissem, a investigação dentro das comunicações internas das firmas e agências em causa pode esclarecê-las. Os emails são reveladores. O governo já possui pegadas documentais críticas – aquelas da AIG, Fannie Mae de Freddie Mac, o Departamento do Tesouro e a Reserva Federal. Esses documentos deveriam ser investigados, completamente, pela autoridade competente e também divulgados, quando apropriado, ao público. Por exemplo: será que intencionalmente a AIG emitiu CDSs contra instrumentos que a Goldman havia concebido em nome do sr. John Paulson para fracassar? Se assim for, por que? Ou outra vez: Será que a Fannie Mae e o Freddie Mac apreciaram a fraca qualidade das RMBSs que estavam a adquirir? Será que assim o fizeram sob a pressão do sr. Henry Paulson? Se assim for, será que o secretário Paulson sabia? E se o fez, por que ele actuou assim? Num documento recente, Thomas Ferguson e Robert Johnson argumentam que a "Opção Paulson" foi destinada a adiar uma crise inevitável para depois das eleições. Será que os registos internos confirmam esta visão?
Vamos supor que a investigação que estão prestes a começar confirme a existência de fraude generalizada, envolvendo milhões de hipotecas, milhares de avaliadores profissionais, subscritores, analistas e os executivos das companhias nas quais eles trabalhavam, bem como responsáveis públicos que a isso assistiam fechando os olhos. O que será a resposta apropriada?
Alguns parecem acreditar que a "confiança nos bancos" pode ser reconstruída por uma nova rodada de boas notícias económicas, pela ascensão dos preços das acções, pelas novas promessas de altos responsáveis – e pelo não olhar demasiado atentamente para a evidência subjacente de fraude, abuso, engano e burla. Ao prosseguirem vossas investigações, minarão, e acredito que possam destruir, tal ilusão.
Mas você tem de actuar. A alternativa verdadeira é uma fracasso a estende-se ao longo to tempo do sistema económico ao político. Da mesma forma como muitos poucos previram a crise financeira, pode ser que muito poucos estejam hoje a falar francamente acerca de onde um fracasso em tratar das consequências pode levar.
Nesta situação, deixem-me sugerir que o país enfrenta uma ameaça existencial. Ou o sistema legal deve fazê-lo funcionar. Ou o sistema de mercado não pode ser restaurado. Deve haver uma limpeza completa, transparente, efectiva e radical do sector financeiro e também daqueles responsáveis públicos que traíram a confiança pública. Aos financeiros deve-se fazê-los sentir, nos seus ossos, o poder da lei. E o público, o qual vive de acordo com a lei, deve ver muito claramente e sem ambiguidades que isto é o caso.
Muito obrigado.
18/Maio/2010
[1] caveat emptor: regra nas leis dos contratos determinando que o vendedor não garante a qualidade de sua mercadoria sem um compromisso especificado.
[2] RMBS: Residential mortgage-backed security
[3] Lake Wobegon : cidade fictícia no estado do Minnesota.
Texto de declaração escrita apresentada pelo autor ao Comité Judiciário do Senado dos Estados Unidos.
"Retirado do Blogspot pimentanegra"
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