segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Dentro da noite sem cor

DENTRO DA NOITE SEM COR


Patchwork livro para teatro de André Queiroz (Multifoco, 2011) é como o título quer: uma mixórdia, contudo tem o cheiro ocre das velas acessas em uma cerimônia fúnebre; todos os recortes escolhidos por Queiroz levam inevitavelmente à morte  perdidos & abismados fragmentos/emissários alados da morte (Ney Ferraz Paiva). Relaciono-me com a escrita desse autor há pelo menos doze anos, tomando parte muitas vezes da cozinha dele, dos bastidores de sua biblioteca, das conversas, vendo-o para além do distendimento que a escrita produz.
Certa vez ao ler um de seus romances tive reações cardíacas que não me agradaram, e me afastei por um tempo da sua produção ficcional; detive-me aos ensaios. Encaro agora quase como um atrevimento escrever sobre este livro, do qual ouvi falar muito antes de publicado, para encontrar outras bifurcações para o título, gosto de chamar de nome, penso que personifica a obra; e dessa vez tive de consultar a tradução, uma vez que inevitavelmente me remetia aos interessantes panos de prato que minha mãe confecciona. E foi com grata surpresa que percebi que André também teve esse delicado olhar sobre o cotidiano, o doméstico, o que está dentro, o que im-porta (em atenção à raiz da palavra importância).

te escrevo hoje porque fiquei sabendo que estás por estes lados. Recolheram a ti como a mim. Ironia do destino este quase encontro de que padecemos! Como estás? Soube que Ângela ainda te habita a alma?”

No jogo do tarô a carta XIII, a Morte, é a que mais provoca receios aos consulentes, mas de acordo com os textos antigos sobre a arte da adivinhação, a morte se tornou o símbolo que evidencia a inutilidade de toda a riqueza, poder ou vaidade. Por isso, esta carta simboliza a transformação que destrói as coisas para que possam ser reconstruídas depois. É uma transformação inevitável ou mesmo um rejuvenescimento. Em Patchwork a morte se dá muitas vezes como uma lembrança embotada do que não se viveu, do que por muito se esperou, ou como um devir, muito próximo a quem se consegue inclusive sentir o cheiro, como é o caso de O grito na suspensão da morte, em que um já espectro se coloca diante de soldados em um – não muito claro – campo de extermínio. E dali, daquela posição pouco confortável se põe como um vidente a imaginar as ínfimas possibilidades de vacilo do atirador, quando tem absoluta certeza que não existe nenhuma chance para outro desenlace.

O livro é para o teatro, mas poderia ser para tocar no rádio, ouvir em praça pública, em movimento e dança, essa cartografia de memórias recapituladas, sem algum apelo paisagístico, como bem disse Deleuze: No Ocidente a árvore plantou-se nos corpos, ela endureceu e estratificou até os sexos. Corpo-livro não estratificado no qual tudo se possibilita em tantas e tamanhas direções, fluxos, pensamentos. Daí o transcurso de Queiroz ir além da filosofia: Se eu fosse mulher cada poema de Álvaro de Campos seria um alarde para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais. Assim tudo acaba em silêncio e poesia. Fernando Pessoa.

O mundo tornou-se caótico, mas o livro permanece sendo a imagem do mundo  sábia organização maquínica do pensamento. Quantos mundos cabem em Patchwork? Cabem o mundo da razão e des-razão, da vida e da morte, da tristeza e da alegria, da amizade e da rivalidade. Um dos homens mais sábios que existiu, disse que “a certeza da morte poderia adoçar cada vida com uma gota perfumada de leveza...” Friedrich Nietzsche. Queiroz trata a morte com a urgência cadente de quem nasce: ... as pernas o caminho, tem sede os olhos saltam para fora, quais os que vejo nessa aflição da hora empanturrada na morte de cá, senão os dela, a outra na descostura da pele – de dentro pra fora, o lance da vida em força, os olhos saltitantes em festa, são distantes os olhos no tempo a se fazer, será que duro este remendo. (“A criança breve”).

“- A gente não vai para o céu. É o oposto: o céu é que nos entra, pulmões adentro. A pessoa morre é engasgada em nuvem.” Mia Couto. A morte sempre rende e renderá boas histórias; nosso escritor não é imune a essa compreensão, sempre tocando as extremidades da vida com enorme delicadeza, com o sentido de que coisas frágeis demais podem ser rompidas, dependendo de como inclusive são olhadas. A literatura a que Queiroz se entrega em Patchwork tem um suave cheiro de morte como um bosque de eucaliptos após a chuva de verão. Não é uma leitura que de início fascine pela trama elaborada, depende de certo esforço, é um corredor apertado e pouco confortável que oferece ao principiante certa dificuldade, tem um ritmo próximo do rock & roll, uma batida psicodélica e imagética; posso estar falando de algo distante, estranho ao texto, mas compreendo que a literatura tem esse poder de reverberar de maneira diversa por cada ouvido.

Juliete oliveira
Imagem: Giovanni Segantini
Salgueiro-PE, 02 de abril de 2012

sábado, 7 de julho de 2012

América Latina (latindo a solidão?)



É com assombro que leio a recente declaração do analista Juan Carlos Monedero, ex-conselheiro do presidente Hugo Chaves: “a salvação do planeta está na América Latina”. Carta Maior, Sábado, 07 de Julho de 2012.

Muito mais do que uma constatação isso nos remete a uma sentença. Como assim? Novamente teremos, “nós os latinos americanos” que salvar algo? Sendo que sequer nos recuperamos de ter salvo vários países europeus via mercantilismo – mesmo tendo se passado alguns séculos, vivemos ainda à sombra da hecatombe que provocou o desaparecimento de nações inteiras e gerou a cultura escravocrata da qual não conseguimos nos livrar, sem falar no aniquilamento da possibilidade de se conhecer e fortalecer as culturas eliminada.

O argumento de Monedero se ancora na impossibilidade da Europa, frente aos problemas financeiros e sociais iniciados na última década, no desinteresse da China e incapacidade total da África, por razões que nem precisam ser citadas. “A sociedade pode executar as suas próprias ordens, e executa-as de fato: e se emite ordens incorretas em vez de corretas, ou se emite ordens em relações e assuntos em que não devia interferir, exerce uma tirania social mais alarmante do que muitos tipos de opressão política, dado que deixa menos meios de escapar”. John Stuart Mill. E mesmo que estas não sejam impostas através de punições extremas, podem penetrar muito mais profundamente nos pormenores da vida, escravizando a alma.

O que a América Latina, tem a oferecer nesse momento para a voracidade do mercado que se quer verde? Poderemos agora mesmo está sendo cooptados por um discurso encantador e nos deixando comprar pelo discurso uníssono, sem perceber que isso pode ser uma espécie de “tirania da maioria”. Ora, se a China pode se dar o luxo de ligar o botão do “F”, sendo ela uma das nações que mais atola o mundo com bugigangas muitas delas desnecessárias, produzidas sem levar em consideração o impacto gerado na extração de matéria prima; se a Europa mais uma vez vai levantar a sua cabeça e se manter acima da situação, ditando regras, as quais ela não se inclui como parte arrolada no cumprimento; se os Estados Unidos se mantêm como aquele a qual todo o resto do mundo deve prestar contas, devendo sempre ser servido. O que tem mais uma vez a América Latina com isso?

Sendo que, no que pese a aparente resolução de problemas relativos à democracia – neoliberal é verdade. Essa parte do continente ainda regurgita problemas primários que tendem cada vez mais eliminar parcelas da sociedade. “Sem uma crítica da racionalidade ocidental dominante pelo menos nos últimos duzentos anos, todas as propostas apresentadas pela nova análise social, por mais alternativas que se julguem, tenderão a reproduzir o mesmo efeito de ocultação e descrédito.” Boaventura de Sousa Santos.

E é exatamente o que se reproduz hoje em matéria de pensamento político, sob o folheado de esquerda que assumiu a América Latina, na visão dele ela traduz hoje um exemplo de modernidade a ser seguindo justamente pelo enfraquecimento disfarçado do capitalismo, sem esquecer é claro o camaleão que este é. Devemos passar a vista nas diferentes configurações nacionais de composição desta América Latina: Brasil desponta como um dos mais promissores mercados e galgou o lugar de a 6ª. economia do mundo, internamente apresenta números lastimáveis para saúde e educação, no quesito distribuição de renda se compara aos mais paupérrimos do planeta; Argentina vem se arrastando nas últimas décadas para conseguir se reerguer de um período nebuloso que alternou militarismos e neoliberalismo que aterraram o país minando quase que completamente as chances de colocar nos eixos novamente a economia interna dos hermanos; Cuba talvez hoje a maior expressão dos equívocos do comunismo como sistema de governo, claro que não exclusivamente pela atuação do povo cubano e sim pela exclusão propiciada pelo resto mundo a esse país que escolheu peitar o vizinho rico e poderoso; Bolívia se consome nas próprias questões étnicas, as quais não tem conseguido resolver mesmo diante da boa vontade de grande parte do continente após a eleição de Evo Molares; Colômbia e o seu escancaramento que permite que uma das pernas do país esteja sob o jugo Norte Americano e a outra ainda entregue aos narcostraficantes e às guerrilhas marxistas-leninistas das Farc; Peru do presente é determinado por sua condição histórica periférica (dependências de investimentos estrangeiros e rigidez de recursos) agravada pela não incorporação de parte considerável da população indígena à política e ao próprio Estado. Chile, uma nação que tem Fujimori na sua história não se recupera fácil dessa presença, talvez seja o que mais padeceu durante o regime militar e ainda hoje tenta se reerguer dos escombros e enterrar os fantasmas do período. Os demais países nem é necessário citar, tamanha é a dificuldade que encontram para se manterem como nação soberana e minimamente cumprirem os seus deveres como estado.
 
É esse o cenário que se desenha como o salvador do planeta! Há uma América Latina plural, diversa e que nunca poderá se manter em bloco com uma política hegemônica e planificada, há uma América Latina com problemas sociais bem próximos aos da África – exclusão social, políticas públicas equivocadas, privilégio de grupos (minorias), sem saneamento básico, e há uma América Latina rica em recursos naturais renováveis ou não, minérios, água, sol, florestas, culturas e todo um mosaico de encher os olhos de países velhos, cansados, exploradíssimos e com o olho comprido lá onde o novo é possível. Essa América Latina pode até ser o elemento considerado como salvaguarda do mundo, contudo corre o imenso risco de não salvar nem a si mesmo!

Juliete Oliveira
Belém-PA, 08 de julho de 2012

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Da educação mercadoria à certificação vazia



Enquanto não houver uma mudança radical, o próprio sentido de educação estará comprometido, posto que seu fim mais elementar não é atingido: em vez de promover a emancipação humana, produz lucro para o capital que só enxerga as camadas sociais C, D e E quando estas se apresentam como potencial mercado consumidor.

O ensino superior, público e privado, no Brasil passou por grandes transformações nas últimas décadas. Essas mudanças – travestidas de democratização, por favorecerem o acesso – visaram atender a uma proposta de privatização e barateamento da educação.
O Ministério da Educação (MEC) alardeia números, sobretudo para organismos internacionais – que obrigam o país a se enquadrar em padrões estipulados por eles na competição do mercado de consumo, trabalho e pesquisa –, que demonstram o crescimento do acesso ao ensino superior, ainda que distantes daqueles objetivados pelo Plano Nacional de Educação (PNE) (o acesso é de apenas 13,8% dos jovens, entre 18 e 24 anos). Porém, esse suposto processo de inclusão tem facilitado, para além do aceitável, um crescimento vertiginoso das instituições de ensino superior (IES) privadas, com desdobramentos que passam pela precarização do trabalho docente e pela formação duvidosa que essas empresas têm oferecido aos alunos por ela formados.
A predominância de objetivos economicistas em detrimento dos pedagógicos nas IES privadas permitiu um fenômeno relativamente novo no Brasil: a formação de conglomerados educacionais, grandes empresas, de capital aberto e com forte participação de grupos estrangeiros em seu quadro de acionistas. A autorização para funcionamento dessa espécie de oligopólio do setor educacional tem intensificado a visão mercantil da educação superior no Brasil. Os exemplos mais representativos desse modelo de organização empresarial na educação ficam por conta dos grupos educacionais Kroton-Pitágoras, Estácio de Sá, SEB (Sistema Educacional Brasileiro) e Anhanguera Educacional. Esta última, com a recente aquisição da Uniban, passou a ser o maior grupo educacional do país, atendendo aproximadamente 400 mil alunos em campi espalhados por diversos estados brasileiros. Além disso, manteve sua projeção de crescimento de atingir 1 milhão de estudantes em cinco anos, segundo matéria do Valor Econômico de 17 de novembro de 2011.
A alteração no padrão de financiamento das IES privadas promoveu uma mudança significativa no modelo de gestão: o papel que antes era predominantemente exercido por mantenedoras, de caráter familiar ou religioso, hoje passou a ser de responsabilidade de bancos ou fundos de investimentos que contratam executivos como seus representantes, padronizam procedimentos de relações de trabalho nos departamentos de recursos humanos e prestam contas ao fundo de ações. Decorre daí um perfil de gestão alinhavado com a lógica empresarial, sob responsabilidade de executivos, e muito distante dos objetivos educacionais que sempre foram sustentados por professores e pesquisadores.
Abandono do Estado
Tomado pela óptica do lucro, o setor educacional privado tem se valido, oportunamente, do abandono do Estado na oferta de vagas públicas para a formação superior. Dessa forma, as IES privadas, cuja existência deveria ter um caráter complementar, acabaram predominando e se consolidando em grupos que formulam e ditam as regras de seu interesse para a (des)regulamentação do setor, regras essas beneficiadas pelas chamadas políticas de parcerias público-privadas, as quais são alicerçadas sobre o princípio da transferência de dinheiro público para a iniciativa privada com a finalidade de que esta última cumpra o papel que o Estado se nega a exercer. No caso do ensino superior, essas transferências se dão predominantemente por meio do Programa Universidade para Todos (ProUni) e do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), além dos programas de benefícios de isenção fiscal oferecidos pelo BNDES. Nesse ponto, o discurso falacioso do Estado e o do setor privado convergem: trata-se de iniciativas e proposições que manifestam concretamente a preocupação com a formação do brasileiro e com o desenvolvimento do país!
De modo geral, a consolidação da mercantilização da educação e a formação de oligopólios educacionais têm ocorrido com base na incorporação de princípios e fundamentos do setor empresarial, ou seja, na otimização dos recursos. Como afirma Marilena Chauí (2001), “a Universidade está estruturada segundo o modelo organizacional da grande empresa, isto é, tem o rendimento como fim, a burocracia como meio e as leis do mercado como condição”. Essa fórmula – clássica do neoliberalismo – consiste na diminuição das despesas para o consequente aumento dos lucros. Assim, com vistas a assegurar um perfil rentável − à empresa, é claro −, torna-se necessária a precarização das relações de trabalho: redução de salários, perda de direitos, ameaças e cobranças pelo desempenho da instituição nas avaliações externas promovidas pelo MEC são alguns traços da rotina de professores das IES privadas.
Ao mesmo tempo, concorre para intensificar os contornos dramáticos desse quadro a expansão da modalidade EaD (educação a distância), que em 2010 fechou o ano com 973 mil alunos matriculados, o que corresponde a 30% de todos os universitários em instituições privadas. Nesse caso, a educação mediada pela tecnologia, que deveria servir para aproximar os extremos sociais, acaba por aprofundá-los. Contudo, para os empresários, o aliciamento desse recurso é tomado como mais uma vantagem mercadológica capitalista, sobretudo por potencializar sua capacidade de lucro.
Na outra ponta, os salários praticados nas IES privadas são – via de regra – aviltantes, o que obriga muitos profissionais a lecionar em várias instituições, seja para compor a renda, seja para se prevenir das demissões, muitas vezes arbitrárias. Nesse contexto, os professores se veem impedidos de desempenhar tarefas diretamente ligadas à sua função (e ao ensino superior, ou seja, ensino, pesquisa e extensão), absorvidos que estão por uma jornada de trabalho extenuante. No entanto, paralelamente a isso, ocorre um processo silencioso de captura da subjetividade dos docentes com objetivo de estabelecer uma competição interna, cuja face mais alarmante é a perda da autonomia. Como toda competição tem exigências, impõe-se que esses profissionais – para terem condição de competir – sejam aguerridos, “pró-ativos”, competentes e indiferentes às questões coletivas, o que os leva a um distanciamento de seus sindicatos e associações e permite, muitas vezes, que sejam – deliberadamente – vistos como mão de obra manipulável pelos patrões.
Precarização e intimidação
Se de um lado temos a perda da autonomia dos professores como uma ameaça à própria noção de função docente, de outro notamos que, por parte dos empresários da educação, a oferta de uma formação aligeirada tem exigido profissionais cada vez menos críticos e progressivamente mais alienados da prática educativa. Não é raro o relato de professores do ensino superior que têm seus conteúdos – planos e ementas de cursos –, bem como suas avaliações, elaborados por um terceiro que nunca sequer esteve em uma sala de aula. Essa tentativa, por parte dos patrões, de padronizar a prática pedagógica para garantir um rendimento mínimo nas avaliações externas evidencia de maneira cabal seu propósito de controle absoluto sobre a mercadoria que vendem.
Dessa forma, a reação e a resistência a essa prática de mercantilização da educação impõem grandes desafios. No estado de São Paulo, que acompanhamos mais de perto, tem sido cada vez mais difícil o enfrentamento com os patrões do ensino superior nas campanhas salariais organizadas por nossa federação, a Fepesp (Federação dos Profissionais de Educação do Estado de São Paulo), pois há um evidente conflito nas pautas apresentadas para negociação. Do lado de lá, a ofensiva é para subtrair direitos historicamente conquistados e que, vistos com a luneta do capital, representam entraves normativos à expansão dos lucros. Em razão disso, questões como plano de carreira, regulamentação da EaD e aumento real são deliberadamente ignoradas pelos patrões, que, por sua vez, promovem lobbiesjunto ao Poder Legislativo, a fim de que as regras do setor continuem a beneficiá-los.
Entretanto, a predominância de valores empresariais na organização das IES e a falta de regulamentação efetiva por parte do MEC têm imposto uma permanente ameaça, ainda que velada, que é o desemprego. Assim, os professores insatisfeitos com salários e condições de trabalho incorporam a responsabilidade incutida pelo patrão, de que o mercado funciona assim: os insatisfeitos que se mudem. A aceitação dessa ideia leva a um comportamento defensivo, porque nos faz crer que nada pode ser feito e, por isso mesmo, qualquer iniciativa coletiva deve ser vista como prejuízo ao próprio trabalhador.
Há também que se ressaltar a necessidade urgente de que o debate sobre a educação seja tomado como fundamento para um crescimento qualitativo e efetivo do Brasil, sobretudo para a população que ainda anseia conhecer na prática a longo prazo esse crescimento. Para validarmos o princípio democrático do direito à educação, sem, contudo, ignorar que o mercado do ensino privado não arrefecerá a curto prazo, precisamos assegurar o investimento de 10% do PIB na educação pública – que estimamos universal e de qualidade –, a fim de que ela seja o referencial para o setor privado, e não o contrário.
Enquanto não houver uma mudança radical nesse quadro, o próprio sentido de educação estará comprometido, posto que seu fim mais elementar não é atingido: em vez de promover a emancipação humana, produz lucro para o capital que só enxerga as camadas sociais C, D e E quando estas se apresentam como potencial mercado consumidor.
A forte presença do controle corporativo em um setor essencial como a educação provoca sérias fissuras na malha social, na medida em que os desdobramentos da transferência tácita da responsabilidade do Estado para a iniciativa privada têm autorizado o funcionamento de fábricas de diplomas com certificação vazia, para uma população que, embriagada pela democratização do acesso, ainda não se sabe enganada.

* Andrea Harada Souza é Professora de literatura, presidente do Sinpro Guarulhos e membro da coordenação estadal da CSP-Conlutas.
** Publicado originalmente no site Le Monde Diplomatique.
(Le Monde Diplomatique)
Imagem: Gordon Matta Clark

sexta-feira, 6 de abril de 2012

De queijo, impunidade e outros odores sujos da lei
por Juliete Oliveira

Tribunais podem cheirar a queijo, instalados numa venda do Mississippi rural numa história contada por William Faulkner. Outros podem exalar odores menos palatáveis, ainda que sediados numa corte suntuosa e com localização nobre numa capital federal. O mau cheiro da sentença – a um só tempo técnica e política, ética e jurídica da ministra do Superior Tribunal de Justiça Maria Thereza de Assis Moura contra vítimas de estrupo. Três meninas de 12 anos. O mau cheiro e a vergonha assinalam o horizonte extenso dessa questão. Os desastres que expõem. Quem estará resguardado no ambiente refinado dos tribunais, se aí se fabricam histórias a partir de realidades falsas, alucinadas, para lá de ficcionais? Prostitutas, meninas ou adultas, desde então com culpa permanente no cartório, a se validar o senso comum e o preconceito das ruas na interpretação de uma corte de justiça. Tal seria a condição da prostituta, a culpa? Prostituta, no Brasil, não teria defesa? Seria este o crime preferencial, verdadeiro? Ou bem ao contrário do que supõe a ministra, sua alegação se fundamentaria numa visada arcaica, muito antiga mesmo, constituída por uma instância de autoridade contra outro que sequer tem o corpo para se defender? Até mesmo o Estado patriárquico pode sentir aí o cheiro nauseabundo do preconceito e da impunidade. A determinação da ministra, ou seria mais correto dizer, seu discurso, incorpora a cifragem da censura e do recalcamento meramente moralista e retrocede a uma sociedade em que as desigualdades prosperam, sobretudo porque as vítimas “tomam o lugar” do réu nos tribunais. Com efeito, um parecer de “justiça” que vê em meninas prostituídas tamanha periculosidade – “as vítimas, à época dos fatos, lamentavelmente, já estavam longe de serem inocentes, ingênuas, inconscientes e desinformadas a respeito do sexo”, não corresponde a nenhuma das “mudanças sociais” operadas na sociedade brasileira, antes, ao retrocesso das mutações, às viragens próprias do poder. Ou ainda mais, remete a uma autoridade publicamente reconhecida que diverge da obtenção legal e consensual de que a infância deve ser protegida, sobretudo da exploração sexual e suas variantes. Uma vez que meninas não vêm ao mundo para ser prostitutas. São crianças, e se tão logo estão “longe de serem inocentes”, esse é um desiquilíbrio que cabe à sociedade e à justiça restabelecerem. Que meninas de 12 anos possam ser consideradas nocivas por conta da experiência dramática em que vivem, podendo inclusive ser penalizadas pela vulnerabilidade da sua inocência, torna irredutível o desenrolar de uma sessão na corte e do seu registro escabroso: uma juíza do Supremo Tribunal de Justiça conflituar os termos experiência (“conhecimento”) e inocência (“ser não nocivo”) em defesa de um estuprador, libidinoso e patético. Por que Faulkner teria instalado uma sessão da corte numa venda de arrabalde? Talvez porque os produtos ali expostos, todos de baixa qualidade e possivelmente fora do prazo de validade, se equiparam aos pronunciamentos e decisões tomadas – “chegando em intermitentes lufadas, momentâneas, breves, por entre o outro cheiro, constante, o cheiro e o senso, de medo...” Crianças que desde tenra idade se vendem por alguns trocados nas ruas das cidades Brasil afora, atravessam enfileiradas de uma ponta à outra na imagem desolada destas três meninas que, ao que parece, ao que tudo indica, foram vendidas agora, sob o abrigo da lei e da justiça, uma vez mais.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

O que aprendi com as nuvens

                                                                                         Para o VII Fórum Brasileiro de Educação Ambiental


Ao sobrevoar Salvador numa aeronave pequena advinda do sertão pernambucano, tive dois insights, o primeiro: as cidades, quando vistas do alto, por maiores que sejam se constituem de pequenos pontos, quase que como pontinhos que alteram a continuidade da paisagem da terra. O segundo: o parcelamento do solo pode ser razoavelmente compreendido quando se tem em mente essa perspectiva da geografia lá em baixo. 

Mas o que se sabe mesmo com extrema clareza, é que essa partilha obedece a fatores outros que não se filiam única e exclusivamente à alternativa locacional justa, para quase todos os ambientes. Jean Baudrillard em seu “simulacros e simulações” versa sobre a distribuição aérea dos hipermercados: Há que ver como centraliza e redistribui toda uma região e uma população, como concentra e racionaliza horários e percursos, práticas – criando um imenso movimento vaivém. Contudo, ele vai mais além, denuncia que os abjetos expostos nesses ambientes não são mais mercadorias e sim testes, que nos interrogam e somos intimados a responder e que a resposta está incluída na pergunta. Uma mensagem dos media.


O que me levava a Salvador buscava discutir também esses pontos, talvez por isso a percepção das nuvens envolvessem tais aspectos. O VII Fórum Brasileiro de Educação Ambiental se constituiria num espaço “livre” para fazer voar o pensamento. Muito mais do que as condições climáticas, bióticas, hídricas do ambiente lá esteve em discussão o sujeito, como uma instância não evidente a se restabelecer: não basta pensar para ser, como proclamou Descartes, já que inúmeras outras maneiras de existir se instauram fora da consciência, ao passo que o sujeito advém no momento em que o pensamento se obstisna em apreender a si mesmo e se põe a girar como um peão enlouquecido, sem enganchar em nada dos territórios reais da existência, os quais por sua vez derivam uns em relação aos outros, como placas tectônicas sob a superfície dos continentes.


Descobrimos no Fórum a necessidade de qualificar a nossa participação nos processos decisórios, e que devemos enxergar o projeto de desenvolvimento ao qual o Brasil se atrela e que isso faz parte de um projeto mundial que não leva em consideração subjetividades e singularidades comunitárias, uma recusa que nos adoece imensamente. “Trata-se, na verdade, de fazer que intervenham saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados (pelo olhar estrangeiro). Contra a instância teórica unitária que pretende filtrá-las, hierarquizá-las, ordená-las em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns.” Salienta Michel Foucault.


Estando ali e aprendendo uns com os outros fomos além: o saber empossando a vida toda, em um curso apaixonado e imprevisível próprios dos saberes que não são amarrados por convenções e estão dispostos como uma xícara de café oferecida ao amigo em um dia qualquer.


Juliete Oliveira

Salgueiro-PE, 02 de abril de 2012.

quinta-feira, 8 de março de 2012

102 anos de luta pacífica


As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios.
Ana Cristina Cesar


Há 102 anos, em 1910, a socialista alemã Clara Zetkin propôs, na 2ª Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, na Dinamarca, a criação do Dia Internacional da Mulher, 8 de março, em homenagem as mulheres que morreram na fábrica em 1857.
Toda vez que penso nesta história imagino aquelas mulheres felizes e ansiosas por terem conseguido uma reunião, seriam ouvidas.
Finalmente poderiam falar de suas dificuldades, das 16 horas diárias de trabalho, da equiparação salarial, pois só recebiam um terço da remuneração masculina, tratamento digno dentro do ambiente de trabalho e tantas outras simples e justas reivindicações.
Choro a dor do espanto, do desespero de se encontrarem trancadas e morrerem queimadas. Em quem pensavam aquelas mulheres? Provavelmente em seus homens, filhos, maridos, pais.
Sempre foi assim a luta feminina jamais derramou o sangue masculino em seus protestos pela busca da igualdade, do reconhecimento, do respeito, da valorização. Foi e é pacífica, sem armas, sem violência. No entanto quantas são as histórias de mulheres mortas, as tecelãs operárias de Nova York¹ as alunas de Engenharia vítimas da loucura de um aluno machista no recente ano de 1989, no Massacre de Montreal². E quantas são as vítimas anônimas, porque disseram não, porque quiseram trabalhar, estudar..., foram mortas por homens, pelos seus homens.
Nós, mulheres rasgamos sutiãs, realizamos passeatas, batemos panelas, às vezes pelos direitos dos maridos, em referência ao protesto das esposas de militares durante a greve da Polícia Militar do Tocantins em 2001.
E o mais interessante é que a luta nunca foi para tomar o poder ou território masculino, ao contrário, pela igualdade em nossas diferenças, a valorização das características femininas. Por que tudo que é feminino é considerado pejorativo, insignificante, prejudicial? “mulher fala muito, é vaidosa, emocional”, quando que a capacidade aguçada de comunicação, o cuidado zeloso consigo mesmo e principalmente a capacidade de sentir deixaram de ser importantes para uma sociedade civilizada. Somos diferentes, que maravilha! Na natureza nenhuma folha é igual a outra e na diferença se faz o equilíbrio a completude.
E todas as conquistas foram comemoradas sem o desdém arrogante da vitória pela vitória, e sim com a alegria amorosa de quem conseguiu um futuro melhor para todas e todos.
A luta se fará ainda por cem anos, pacífica pela fraternidade entre os gêneros e contra toda e quaisquer formas de discriminação e preconceito.

Letícia Bordin
março 2012

 
¹No Dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos, situada na cidade norte americana de Nova Iorque, fizeram uma grande greve. Ocuparam a fábrica e começaram a reivindicar melhores condições de trabalho, tais como, redução na carga diária de trabalho para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. A manifestação foi reprimida com total violência. As mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas, num ato totalmente desumano.

²Massacre de Montreal – A tragédia ocorreu na Escola Politécnica, em Monteral, no Canadá, há quase 20 anos, em 1989. Um rapaz de 25 anos invadiu a sala de aula e ordenou que os homens (aproximadamente 48) se retirassem da sala, permanecendo somente as mulheres. Gritando: “você são todas feministas!?”, ele começou a atirar enfurecidamente e assassinou 14 mulheres, à queima roupa. Em seguida, suicidou-se. O rapaz deixou uma carta na qual afirmava que havia feito aquilo porque não suportava a idéia de ver mulheres estudando engenharia, um curso tradicionalmente dirigido ao público masculino.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Lúcio Flavio Pinto é um perseguido político –  pelos governos que se revezam no Pará e que não mudam a condição de entrega deliberada das riquezas do estado, submetidos e omissos aos modelos econômicos que foram se impondo; um perseguido político pelas classes dominantes, pelo poder judiciário, pelas elites que tudo tomam para si como forma de lucro, decorrente de golpe, fraude, trapaça. Esses que atuam na Amazônia e a empurram para a barbárie, o atraso, a degradação. E o jornalismo de Lúcio Flávio Pinto é sua experimentação política, denota posição ética, não se restringe apenas à função de informar, ainda que informe, mas se utilizando da informação para pensar as relações socias de poder, não apenas os temas (a violência, a ocupação, o desmando), mas os paradoxos, contradições, antíteses. Daí a palavra que prospera admiravelmente é a vida, suas formas de liberdade ativa.  

''No Pará não apenas o grileiro consegue se apropriar das terras públicas, como ainda se precisa indenizá-lo quando se denuncia''. Entrevista especial com Lúcio Flávio Pinto 

   

Imagine a cena. Você é jornalista e decide usar seu trabalho para denunciar um empresário que se considerou dono de uma terra pertencente ao patrimônio público. O fato é comprovado judicialmente. No entanto, o empresário usa o poder financeiro para deixar claro que não gostou de uma expressão utilizada em sua denúncia. Você é processado por danos morais ao tentar esclarecer a opinião pública e defender o patrimônio nacional. E o pior: você é condenado pela justiça a indenizar o grileiro ofendido. Resumidamente, este é o caso real do jornalista Lúcio Flávio Pinto, que concedeu a entrevista a seguir, por telefone, para a IHU On-Line, relatando detalhes do processo do qual é vítima.

IHU On-Line – Pode explicar brevemente o caso da grilagem de terras e do processo movido pela Construtora C.R. Almeida contra você?
Lúcio Flávio Pinto – Em 1995, Cecílio do Rego Almeida adquiriu o controle acionário de uma empresa de Altamira, chamada Incenxil. Com essa compra, vieram vários papéis, que eram registros e que estavam no cartório, embora não tivessem o título para que essas terras passassem do domínio do estado para o domínio particular. Com esse controle ele se considerou dono de uma área em que apenas uma das fazendas somaria quatro milhões e 700 mil hectares. Um ano depois, em 1996, o Instituto de Terras do Pará – Iiterpa entrou com uma ação de cancelamento e anulação desses registros, por serem fraudulentos. A ação foi recebida pelo então juiz de Altamira, onde hoje está sendo construída a hidrelétrica de Belo Monte, e a empresa recorreu para o Tribunal. O primeiro a dar uma sentença favorável foi o desembargador João Alberto Paiva, que restabeleceu a plenitude do registro que havia sido cancelado pelo juiz local da comarca. Em seguida, o estado também apelou, entrando com interdito proibitório para impedir que qualquer pessoa entrasse nessa vastidão, que caso se constituísse um estado, seria o vigésimo primeiro maior estado do Brasil. A desembargadora Maria do Céu Cabral Duarte concedeu o interdito proibitório antes mesmo de receber o pedido. Todas essas irregularidades eu fui denunciando, porque também sou muito amigo do que era então diretor do departamento jurídico do Iterpa. E nós preparamos, juntos, uma ação para cancelar esses registros. Cecílio ficou extremamente irritado com a minha participação e com os meus artigos. E entrou na comarca de São Paulo com uma ação de indenização por dano moral, porque se considerou ofendido pelo uso da expressão “pirata fundiário”. Essa ação foi deslocada de São Paulo para Belém, porque o local certo é Belém. Mas o juiz de São Paulo que recebeu também uma ação parecida contra um repórter da revista Veja, movida por um vereador de Altamira, não aceitou a ação. E não apenas inocentou os réus, como também os elogiou, dizendo que estavam defendendo o patrimônio público. Eu fui o único condenado, em 2006, por um juiz que não era o titular da vara onde estava o processo. Ele ocupou essa vara por apenas um dia e devolveu o processo quando a titular já havia retomado o controle da vara. Ele não podia mais decidir. E para que a sentença dele tivesse validade, assinou com data retroativa de quatro dias anteriores. Eu fui condenado a pagar oito mil reais de indenização, retroativas a 1999, quando saiu meu artigo no Jornal Pessoal, que é um quinzenário que mantenho aqui, que com os juros e correção monetária, daria hoje 20 mil reais. Eu recorri, mas o Tribunal negou vários recursos, inclusive quando o autor da ação (Cecílio do Rego Almeida) morreu, em maio de 2008. Foi mantida a sentença. Durante esse longo percurso de 11 anos, eu só perdi e várias arbitrariedades foram cometidas. Quando o processo finalmente subiu para Brasília, foi descoberto um erro formal, que fez com que o presidente do Superior Tribunal de Justiça não aceitasse o recurso. Nesse momento, achei que já era demais, porque desde 1992 venho sofrendo processos por pessoas que não tem a mínima preocupação em esclarecer o público, que não exercem o direito de resposta, e que encontraram no poder Judiciário um cúmplice, para me impedirem de continuar a exercer o jornalismo, o que eu faço há 46 anos.
Então, era o limite. E resolvi não recorrer dessa decisão. Abri uma subscrição pública para as pessoas que quisessem contribuir para indenizarmos o grileiro. Espero agora que o processo venha com a execução da sentença. E no dia em que for para pagar, vou comparecer e vou convidar todas as pessoas que participaram dessa subscrição para irmos fazer um ato simbólico no Tribunal, que é entregar o dinheiro e mostrar que no Pará não apenas o grileiro consegue se apropriar das terras públicas, como ainda se precisa indenizá-lo quando se denuncia.

Quem denuncia é punido
A revolta foi ainda maior porque, em novembro do ano passado, a Justiça Federal de primeiro grau aceitou uma ação do Ministério Público Federal e mandou cancelar os registros do Cecílio do Rego Almeida, porque eram indevidos. Ou seja, reconheceu que realmente ele fez uma grilagem. Então, para a Justiça Federal trata-se de uma grilagem. Para a justiça de São Paulo, quem denunciou não apenas não deve ser processado, como deve ser elogiado, porque defendeu o patrimônio público da apropriação ilícita. E para o Tribunal de Justiça do Pará, que tem a jurisdição sobre o segundo maior estado da federação, quem denuncia é punido e as maiores arbitrariedades são cometidas, porque não apenas o tribunal favorece o grileiro, mas também quer se livrar de um crítico incômodo. Todos esses anos em que estou sendo processado na justiça, desde setembro de 1992, em 33 processos, tenho sido vítima de uma perseguição da justiça do Pará. Eu sou talvez o único jornal, embora pequenino, que mostra todos os erros do tribunal. E não é só contra mim que o tribunal faz isso. É que a justiça do Pará é muito ruim.

IHU On-Line – O que lhe motivou a desistir de recorrer à justiça neste processo? Qual o significado político deste gesto?
Lúcio Flávio Pinto – É justamente mostrar que eu estou em um julgamento político. A lei foi deixada de lado, a verdade foi deixada de lado, meus argumentos não foram considerados, as provas dos autos foram ignoradas para me punir, para me calar, para me intimidar. Meu Jornal Pessoal tem 25 anos e ele é sempre crítico, nunca foi desmentido, porque sempre tive essa cautela de só escrever sobre aquilo que posso provar em qualquer estância, administrativa ou judicial. A maneira que eles encontraram foi criar um processo político, em que não interessa o que eu estou dizendo, mas que tenho que ser condenado. Já que eles agiram politicamente, eu resolvi reagir politicamente. Mostrar que eles querem que se pague para um grileiro que está se apropriando de uma área no Pará do tamanho da Bélgica, onde moram 10 milhões de pessoas. Então, vamos pagar. Agora, o culpado é o Tribunal de Justiça do Pará. Tem gente boa lá? Tem. Tem gente competente? Tem. Mas que não tem nenhum acesso ao poder, que não modificam as decisões. O Tribunal se transformou em um lugar onde os criminosos estão conseguindo ganhar. Ninguém provou que o que eu disse era mentira, mas eu sou condenado. Não me deixam o direito de provar. Então, eu quis fazer uma denúncia aproveitando uma arbitrariedade do Tribunal para que a opinião pública não só saiba, como também participe, porque quem doou dinheiro para pagar a indenização está aceitando pagar o sujeito que só não foi para a prisão porque completou 70 anos e a prescrição da pena que cabia a ele já estava prescrita pela idade dele. Se não fosse isso, ele teria uma ordem de prisão da justiça federal. E para a justiça do estado, ele tem razão. As pessoas estão contribuindo e espero que logo adiante se alcance essa estimativa no valor da indenização. Nestes próximos dias estou lançando um livro contando todos os fatos e citando os nomes de todas as pessoas que participaram disso que eu chamo de um "gulag tropical".

IHU On-Line – O que esse episódio evidencia sobre a situação da grilagem de terras no país? O que está em jogo nessa questão?
Lúcio Flávio Pinto – Em primeiro lugar, mostra que tem que se apoiar no CNJ para aumentar o controle externo do poder Judiciário, que é, dos três poderes constitucionais, o que está menos visível e o que está mais refratário ao controle da sociedade. Em segundo lugar, a grilagem se intensifica todas as vezes que há alguma incerteza econômica. Então, as pessoas que têm dinheiro procuram, comprando terras, criar uma reserva de valor contra as ameaças reais, possíveis ou imaginárias, da economia. As terras, pelo seu baixo valor e pelo conceito errado do uso dos recursos naturais da Amazônia (que torna a terra mais importante do que a floresta), se tornam uma reserva de valor certa para os especuladores. Por isso, em momentos de crise, a grilagem e o desmatamento crescem, porque a Amazônia é uma reserva do país, sobretudo dos grupos poderosos que têm dinheiro para investir e manter grandes áreas como instrumentos de especulação imobiliária e financeira. Então, o que precisa ser feito é moralizar o registro de terras que até hoje, apesar dos avanços tecnológicos, continua precário. Os cartórios, por exemplo, fazem o que querem.

IHU On-Line – Se as terras em questão pertenciam ao patrimônio público, porque o dono da Construtora C.R. Almeida se disse ofendido por ser chamado de “pirata fundiário”? Ou seja, chamar grileiro de grileiro é crime?
Lúcio Flávio Pinto – Ele está na lógica dele. Ele quer um pretexto para me intimidar, para me calar, já que comprar, ele não podia. Então, ele inventou essa história. Não deu certo em São Paulo, mas deu certo em Belém. Então, ele tentou e se deu bem. As conexões mostram que foi uma conspiração real e que o objetivo dele era de que não interessasse o que eu estava dizendo, eu seria condenado. E para isso ele usou do seu poder. E não é só um poder que veio do fato de ele ter 1,90m de altura, ou por ele ser um sujeito agressivo, mas é o poder do dinheiro. A fortuna do grupo C.R. Almeida hoje está calculada em 5 bilhões de dólares.

IHU On-Line – Como você se sente, pessoalmente, como cidadão e jornalista brasileiro, diante do episódio?
Lúcio Flávio Pinto – Quando eu vi a decisão do STJ, fiquei perplexo, desanimado, com vontade de ir embora do Brasil, porque mesmo em uma democracia houve o abuso do poder econômico. Mas depois decidi reagir e de uma forma que eles não esperavam, pois acharam que eu ia continuar preso ao processo. Resolvi ultrapassá-lo, sabendo dos riscos de perder a primariedade e de pagar a indenização. Então, estou perfeitamente consciente: vou pagar o preço por tentar mobilizar a sociedade, por tentar fazer com que ela perceba que não é um problema individual, mas um problema social grave o que eu estou enfrentando.

IHU On-Line – Como está a situação atual de Belo Monte e do rio Xingu? Quais os desafios atuais a serem enfrentados na região diante da construção da hidrelétrica?
Lúcio Flávio Pinto – Eles estão fazendo a mesma coisa que foi feita em Jirau, no rio Madeira: estão criando fatos consumados. Até a multa que o Ibama aplicou à Norte Energia, ao consórcio que está construído, nos faz pensar se é para valer ou se é como um “banho de piranha”, para desviar a atenção, porque a multa é excessiva, não se justifica ao delito que eles cometeram, que é simples. O governo está sendo rigoroso e o resultado concreto disso é que os fatos vão avançando. Hoje já é difícil colocar em questão se Belo Monte será construída ou não. Parece que agora vai mesmo ser construída. No entanto, o que se pode fazer para atenuar os problemas? Acho que essa é uma questão que ainda ninguém examinou com rigor, porque não se tem uma visão completa da situação. Talvez esta seja a linha de transmissão mais cara da história do Brasil. Vai representar uns 60% do custo da obra de geração. Então, o grande desafio para Belo Monte não é construir, pois eles vão construir de qualquer maneira, mas é o dia seguinte. Quanto irá custar? Qual será o prejuízo? Qual será o subsídio? O governo do PT sempre foi contra a privatização, sempre acusou o PSDB de colocar o Estado a serviço dos interesses particulares. No entanto, a atual grande marca do governo do PT são as grandes obras, que continuaram desde o regime militar sem mudar nada, incluindo o dinheiro do BNDES e o tesouro nacional. As hidrelétricas anteriores não tinham esse esquema. Então, o caminho será o de questionar quem vai pagar essa conta e de quanto será, para atender ao desejo impulsivo e compulsivo de construir Belo Monte.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Defensores da Amazônia encaram o exílio ou a morte
por Tom Phillips, do The Guardian

Ativistas brasileiros que denunciavam madeireiros ilegais podem esperar visitas de pistoleiros.



Um único tiro na têmpora foi a recompensa de João da Gaita por dar com a língua nos dentes. Seu amigo, Junior José Guerra, só teve um pouquinho mais de sorte.
Qual foi o prêmio recebido por Guerra por denunciar os madeireiros ilegais que destroem a maior floresta tropical da Terra? Um lar quebrado, duas crianças petrificadas e o exílio incerto de uma vida que ele havia passado anos construindo na Amazônia brasileira.
“Eu não posso voltar”, diz Guerra, um dos mais novos refugiados ambientais da Amazônia, três meses depois que o brutal assassinato de seu amigo forçou ele, sua mulher e seus dois filhos a se esconderem. “Me contaram que eles estão tentando descobrir onde estou. A situação é muito complicada.”
João da Gaita, 55 anos, e Guerra, 38, moravam ao lado da BR-163, estrada remota e traiçoeira, que corta o Estado do Pará de norte a sul. Eles eram migrantes do sul do Brasil, que haviam vindo em busca de uma vida melhor.
Nenhum dos dois era ambientalista de carteirinha e ambos haviam supostamente se envolvido com crimes ambientais. Mesmo assim, eles optaram por cometer o que é considerado um pecado capital nesse rincão isolado do Brasil – eles denunciaram criminosos que estariam ganhando milhões com a ceifa ilegal de ipês das unidades de conservação num canto da Amazônia conhecido como Terra do Meio.
Numa região frequentemente comparada ao Velho Oeste, trair os responsáveis pela pilhagem da floresta frequentemente leva ao caixão ou ao exílio. João da Gaita, músico amador e mecânico cujo nome era João Chupel Primo, encontrou seu destino primeiro.
Em outubro passado, ele e Guerra entregaram às autoridades um dossiê que apontava as supostas atividades de madeireiros ilegais e grileiros da região. Em questão de dias, dois homens apareceram na oficina de Primo, na cidade de Itaiatuba, e o mataram a bala. Uma fotografia ensanguentada de seu cadáver, colocada na laje do agente funerário, foi publicada pelo tabloide local. “Há sinais de que isso foi execução”, disse ao jornal o chefe de polícia da cidade, José Dias.
Guerra escapou da morte, mas também ele perdeu a vida. Avisado do assassinato de seu amigo, ele se trancou em casa, agarrado a uma espingarda para resistir aos pistoleiros. No dia seguinte, ele foi escoltado para fora da cidade pela Polícia Federal. Desde então, Guerra embarcou numa peregrinação solitária pelo Brasil, viajando milhares de quilômetros em busca de apoio e segurança. Ele se tornara o mais recente exilado amazônico – gente que é forçada a esconderijos autoimpostos ou proteção policial por causa de suas atitudes contra aqueles que destroem o meio ambiente.
“Eles ordenam o assassinato de qualquer um que os denuncie” (às autoridades), disse Guerra esta semana por uma precária linha telefônica no seu mais recente esconderijo. “Nós pensávamos que (…), se denunciássemos os crimes, eles (o governo) fariam alguma coisa (…). Mas o resultado foi que João foi assassinado.”
Em junho, o Brasil hospedará a Conferência Rio +20 das Nações Unidas, sobre desenvolvimento sustentável. Líderes mundiais se reunirão no Rio para debater como conciliar o desenvolvimento econômico com a conservação ambiental e a inclusão social.
O Brasil poderá alardear avanços na batalha contra o desmatamento – em dezembro, o governo disse que a destruição da Amazônia havia caído ao seu nível mais baixo em 23 anos. Mas as contínuas ameaças aos ativistas ambientais representam uma enorme mancha em suas credenciais em questões de meio ambiente.
“O que está em jogo (…) é a capacidade do governo de proteger as florestas e seus povos”, diz Eliane Brum, jornalista brasileira vencedora de inúmeros prêmios por suas reportagens sobre a Amazônia. “Se nada for feito (…), o governo estará desmoralizado às vésperas da Rio+20.”
Guerra está longe de ter sido a primeira pessoa forçada ao exílio por se opor à destruição. De acordo com números do governo, 49 “defensores dos direitos humanos” estão atualmente sendo protegidas no Estado do Pará, enquanto outras 36 testemunhas também estão recebendo proteção.
No ano passado, depois dos assassinatos de grande visibilidade dos ativistas amazônicos José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, duas famílias locais pegaram um avião rumo a um esconderijo e assumiram novas identidades num rincão distante do Brasil. Como Primo e Guerra, elas sabiam demais.
No Estado vizinho do Amazonas, onde os ativistas dizem que quase 50 pessoas correm risco iminente de assassinato, a líder rural Nilcilene Miguel de Lima foi forçada a fugir de casa. “Os pistoleiros e os assassinos deveriam estar na prisão, mas sou eu que estou presa”, disse ela ao site O Eco depois que uma tentativa de assassinato a forçou ao exílio.
José Batista Gonçalves Afonso, veterano advogado de direitos humanos da Amazônia, disse que já viu “incontáveis” famílias forçadas ao exílio pelo medo de serem assassinadas. Ele atribui a culpa da situação à “ineficiência do Estado para investigar ameaças e fornecer segurança”.
Brum, que tornou públicas as provações de Guerra, disse que a situação dele reforça a ideia de que “não vale a pena denunciar o crime organizado, porque denunciar significa morrer”.
“É possível que, depois do que aconteceu (…), outras pessoas terão a coragem de se rebelar e denunciar o crime organizado na Amazônia?”, ela pergunta.
Ramais de Castro Silveira, o secretário executivo de Direitos Humanos do país, descreveu a situação de Guerra como “extremamente séria” e disse que suas preocupações eram “legítimas”. Mas Guerra não foi incluído num programa federal de proteção a defensores dos direitos humanos porque ele não se qualificava como ativista de direitos humanos, disse Silveira. Ele admitiu que não havia nenhuma proteção específica para ativistas ambientais, mas disse que Guerra tinha recusado lugar num esquema de proteção de testemunhas em outra parte do Brasil por causa de suas “restrições”.
“É direito meu morar lá”, disse Guerra. “Eu arrisquei a minha vida para denunciar esses crimes, e agora eu tenho que ir embora?”
Silveira disse que os responsáveis pelo assassinato de Primo e o exílio de Guerra seriam capturados “no curto a médio prazos”. “Não acredito que o drama pelo qual eles passaram e estão passando tenha sido em vão”, disse ele.
Por enquanto, a vida de fugitivo vai cobrando o seu preço de Guerra, sua mulher e seus filhos, que ele não conseguiu matricular na escola. “Temos que permanecer fortes e tentar lidar com isso”, ele disse. “É o único jeito”.

* Tradução de Idelber Avelar.
** Publicado originalmente no site Revista Fórum.