segunda-feira, 16 de setembro de 2019




A casa nossa de cada dia!

É preciso que a pessoa se lance no centro, no coração, no ponto em que tudo se origina e toma sentido: e eis que se reencontra a palavra esquecida ou reprovada, a alma.  (René Huyghe)

                Para Gaston Bachelard ‘a casa é o nosso canto no mundo’. Complemento dizendo que existem infinitos tipos de casas e de maneiras de habitá-las. Em Palmas/TO a casa é para quem pode pagar por ela, avultosas somas mensais. Para os nobres! Há uma clara e precisa divisão de mundos com as suas casas próprias. Isto ficou muito claro na ação de ocupação de uma quadra do plano diretor sul da cidade, o movimento de ocupação composto por cerca de 300 famílias na tentativa de obter para si a dignidade deste universo, desse cosmo. Ou ainda como diria o filósofo: um cosmos em toda a acepção do termo, foi violentamente rechaçado, o estado e a sua máquina mortífera, chamada polícia, agiu de pronto para não permitir aos que não são nobres, a poética do espaço!

            Me sirvo aqui desta conversação com Bachelard, para falar de um tipo de casa muito particular, da nossa morada original, o local mais protegido: o útero. Foi com o meu útero que senti a dor de Eutália Barbosa, ao ver seu filho apanhando do estado. Este mesmo que deveria nos proteger! Para ele, seu primeiro vínculo no universo da casa. Ato contínuo o filho na tentativa de proteger a mãe, a sua morada metafórica, apanha e segue algemado, sujo de barro! Deste mesmo barro que buscou conquistar para outros, ele mesmo tem casa. Ele, que tem a casa como direito universal, como um princípio de moradia, de lugar no mundo. Que sabe a importância da solidariedade para construir uma sociedade justa. Apanhou, foi exposto na carroceria de um carro de polícia! Seu irmão assistia a tudo tomado pelo desespero. Na tentativa de resolver foi acusado de desacato! Foi também levado. Agindo assim todas as pessoas com vínculos institucionais fortes e relações com aqueles que poderiam agir em defesa das famílias sem teto foram retirados do cenário.

            A vizinhança assistia a tudo indiferente ou revoltada pela presença dos indesejáveis entre eles. Quem são essas pessoas e seus filhos? Quem são esses impróprios para o convívio? A polícia por motivação também imobiliária ostentava o seu aparato bélico. E a casa ficava cada vez mais distante. Escapava como de resto tudo, para as pessoas que tem pouco ou quase nada. Contudo, não faltou companheirismo, vontade, coletividade para aqueles que estavam de pé as três horas da manhã, antecipando o dia, capinando os prováveis lotes, afagando o sonho da casa própria. Pensando como Manoel de Barros: “Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:/Que o esplendor da manhã não se abre com faca”.

            A abordagem abriu um buraco em mim, que assisti a tudo sem nada poder fazer, eu mesma que não tenho casa! Eu mesma que me sinto não pertencer! Não habitar! Agora não consigo esquecer a Carolina Maria de Jesus e o seu Quarto de Despejo, em que dizia: O maior espetáculo do pobre da atualidade é comer.

Juliete Oliveira – sem teto
Palmas/TO, 16 de setembro de 2019

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Once upon a time



Era uma vez um país do absurdo, onde era proibido ser bom, cultivar a beleza, a filosofia e tudo que ela produziu enquanto investigação do pensamento foi banido deste país, a palavra diversidade foi excluída dos dicionários, na escola os alunos passaram a vigiar os professores para que não incorressem no crime de usar a arte como ferramenta de ensino, os príncipes e princesas, mesmo os de mais tenra idade, podiam portar a sua arma contra os professores, que passaram a ser uma casta inferior, acuada, incapaz de se organizar, se movimentar e refém de pais e governantes arrogantes e incautos. 

Este país de recursos biológicos abundantes e com um passado de construção de meios legais para proteger o seu acervo, passou a disponibilizar as suas riquezas, comercializando-as por preços irrisórios e tornando a população cada vez mais sem recursos, a escola, motor da construção do pensamento passou a ser o principal alvo dos governantes, em todas as esferas, do vereador ao presidente da república todos estavam ressentidos com esta instituição. Mas não apenas com ela, sobretudo com aqueles que ousaram em tempos anteriores torná-la democrática, como alguns educadores, os quais — não se ousa pronunciar os nomes — tiveram a desfaçatez de achar que o conhecimento seria capaz de tornar as pessoas mais cuidadosas, críticas, que poderiam ter percepção para transformar a realidade. Este foram definitivamente banidos da história daquele povo.

O país despencou de uma categoria vantajosa, auferida a ele pelas suas condições econômicas resultado do que poderia oferecer ao mundo em matéria de recursos naturais e produção agropecuária, petrolífera, engenharia aeronáutica e tantas outras áreas da produção e do conhecimento. Nos dias que correm os outros países mudam de calçada para não caminharem lado a lado com ele, os bons, os belos, belas, boas, felizes, ou estão escondidos em pequenos contêineres blindados por uma aparência austera, amedrontados, temerosos pelas suas vidas, ou estão buscando meios de irem para outras paisagens, com outras estações, para que possam compor canções de exílio. Nesta nação agora só há espaço para formigas, as cigarras se foram, ou não cantam mais, buscaram disfarces, se transvestindo de outras coisas que não denunciem a sua personalidade desnecessária.

No país do rosa e do azul, não é seguro mais o arco-íris, o baile de são benedito, a produção sem veneno, o riso, a loucura terá que ser encarcerada novamente, posta em vigilância sem sublimação, o alienista está vigiando, aquele formado na escola do medo, na pedagogia do ódio, pedagogia da dependência, aquele cujo filho e filha estudam na escola da proibição, este doutor será a voz de ameaça para os que se ousarem loucos. Como tudo está velho, ultrapassado, o país e seu povo não serão mais considerados como algo relevantes, só o seu território é do interesse dos outros países, que deverão tomar posse do que há de revelante para o mercado e aos poucos torná-los meros manequins de um passado carnavalesco.  

Juliete Oliveira
Palmas-TO, 07 de de fevereiro de 2019
Imagem: Escola de Circo de Recife

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

a cova não contém



não contém o meu espírito de acender raios
não contém meus braços de árvore
não contém minha semelhança de nuvem
não contém meus delírios de parturiente
não contém minha insistência de semente
não contém a minha pele escura
não contém minha vulva
não contém minha sabedoria de relâmpago
não contém minha serpente impaciente
não contém minha verdade de terra
não contém língua & desejo
não contém meu canto de outro tempo
não contém promessas de ouro
não contém o desconhecido vindouro
não contém a consciência do instante livre
não contém meus olhos de aurora
não contém o que sei & o que não sei
não contém o que escuto do vento
não contém meu grito de sangue antigo
não contém espectros da noite
não contém os segredos dos cantos que entoei
não contém o ontem & o agora
não contém a bravura cerrada em meus dentes
não contem o escuro do meu lamento
não contém o testemunho arenoso do que sou
não contém a ladainha em sétima solidão
não contem a renúncia escrita em idiomas imortais
não contém as festas & os desafios dos meus passos
não contém uma colheita de devires
não contém a aridez de campo sem flores
não contém foice & martelo
não contém a garganta & seu grito
não contém pés descalços no orvalho da liberdade
não contém o corpo e sua mortalidade
não contém as silabas da justiça
não contém o suor da lavoura
não contém o sulco no solo
não contém a morte & seu deposito
não contém todas as cores & sua cronologia
não contém querer & igualdade
não contém o justo & seu olhar infinitesimal
não contém a pele & suas planícies
não contém nos matar.
não contém, não contém, não contém.

Juliete Oliveira
Palmas-TO, janeiro de 2019
Imagem: Sebastião Salgado

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Governar é criar desertos


https://pxhere.com/pt

Nunca me fez tanto sentido a leitura das teorias existencialistas, como nos dias que correm, nos meus 47 anos de vida e os aproximados 30 de lucidez, nunca senti tão presente as angústias, desesperos da existência, alertados por Sartre e Heidegguer, quanto agora. A fala de Eduardo Viveiro de Castro, a quem tenho profundo respeito e admiração, é tudo o que gostaria de ler e ouvir em referência ao fatídico incêndio no Museu Nacional, ou ainda ao desaparecimento histórico do Brasil.

A vida significada, ressignificada, que faça sentido só é possível por meio de elementos que a justifique, é assim para a arqueologia, antropologia, biologia, história, geografia, linguística e todas as vertentes científicas que são capazes de, com as suas asas fornecer subsídios para que os acontecimentos ganhem significados, aos olhos, ouvidos, tatos e olfatos das pessoas. Perder um acervo como o do Museu Nacional é perder um oceano de possibilidades e jogar por terra a vida de centenas de milhares de pesquisadores, lembro aqui da letra do Gonzaguinha: Um homem se humilha /  Se castram seu sonho /  Seu sonho é sua vida /  E vida é trabalho /  E sem o seu trabalho / O homem não tem honra /   E sem a sua honra /  Se morre, se mata /  Se morre, se mata  / Não dá pra ser feliz (…). Bem adequada ao sentimento comum a uma boa parcela de pessoas que entendem a magnitude do que se perdeu: Não dá pra ser feliz!

Isto é existencialismo, pelo menos é o que se aproxima, na minha rasa compreensão, questionar a razão de tudo isto, e a minha própria razão aqui, agora, neste lugar. Sei que para a maioria das pessoas isto não fará sentido algum. Mas sei que por menor que seja a sensibilidade nas pessoas podem sentir a esterilidade na relação com as coisas, com o que importa – embora a semântica do termo importar (ser importante) esteja deslocada, pareça diferente, esteja mais individual, egoísta, autorreferente, aesthetics. Podem sentir um imenso oco, buraco, vazio que evolui para um soco no estômago, é orgânico mesmo, assim como era orgânico o Museu, um imenso organismo a contar a história de todos nós, uma velha avó sentada sobre as suas pernas transformando em narrativa os meios que nos trouxeram até aqui. A avó foi morta a machadadas, o arado de criar desertos decepou-lhe a cabeça.

Quando Viveiros de Castro diz que no Brasil governar é criar desertos, ele fala do ponto de vista de quem já assistiu muita morte de narrativas essenciais para fundar outras narrativas, fala do lugar de quem também recebeu o soco no estômago sem chances de revidar. Quando defende que o local permaneça como ruína, memória das coisas mortas. Considera que a morte de uma Avó/Museu é o fim. Estamos fadados a matar as avós, silenciar as suas narrativas, estamos existencialmente estéreis.

Palmas-TO, 06 de setembro de 2018
Juliete Oliveira

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Um amor eficaz



“Sabemos que a fome é mortal”, dizia o padre Camilo Torres. “E se sabemos disso, tem sentido perder tempo discutindo se a alma é imortal”?
Camilo acreditava no cristianismo como prático do amor ao próximo e queria que esse amor fosse eficaz. Tinha a obsessão do amor eficaz. Essa obsessão o levantou em armas e por ela caiu, num desconhecido rincão da Colômbia, lutando nas guerrilhas. (Eduardo Galeano, Memórias do Fogo, Vol. I: O Século do Vento, 1988).
O que além de sentimentos como estes deveria nos mover em favor de resolver problemas coletivos e que no final afetam a todos? A fome como finalidade é apenas o resultado de uma séria de fatores que corroem a humanidade. Claro está que ela não se atrela unicamente a ausência de alimentos, mas é até senso comum afirmar, a má distribuição deles. Utilizo este preâmbulo para chamar para atenção a temas que nos últimos meses vem se tornando cada vez mais corriqueiros e até comuns, já que não fazem muitos anos a situação era igual, ou um tanto pior: a violência no campo.
Pode até ser coincidência, mas desde que o Brasil voltou a ser um lugar inseguro ao exercício das liberdades individuais e coletivas, um lugar onde já não é mais possível se prever garantias ao bem comum, os conflitos, assassinatos e massacres daquele que sempre foram vítimas da mão audaz do estado e dos que estão sob a sua permanente proteção, voltou a ser algo bem provável de acontecer a qualquer momento.
O estado do Pará, palco de inúmeras histórias de violência e exceção de direitos, lugar em que o que vale é o quanto se pode pagar para financiar extermínios de pessoas. Quando falo de pessoas leiam, líderes comunitários, sindicais, religiosos, trabalhadores rurais sem terra, índios e todos aqueles que de certa forma estão a serviço da garantia de direitos, da justiça social, da igualdade.
A aritmética da cultura da violência no campo pode ser assustadora, mas não deve ser paralisante, deve servir como um ativo de indignação, inconformidade. 9 mortos nesta quarta feira em Pau d’ Arco, pequeno município do estado Pará, não é apenas mais um número é o desperdício de energia, de vidas, é o fortalecimento de grupos que se mantem no poder graças ao poder de fogo, que mesmo em governos mais democráticos, como o que tivemos nos últimos 12 anos – até 2016 – , se mantiveram como donos dos outros, é só observar as estatísticas do trabalho escravo, feitas pelo Ministérios do Trabalho no período.
Obvio que o que está ruim pode perfeitamente piorar, com relação à política de distribuição de terras e reforma agrária, tudo piora sempre. Agora foram 9 em Pau d’ Arco, mas uns tantos no estado do Mato Grosso, este indígenas. Quantos mais? Pergunto-me. Até que possamos ser maduros o suficiente para compreender que a distribuição de terras e o fortalecimento de políticas públicas para o setor, que não sejam as que já possuímos, enquanto estado, as do agronegócio, poderão perfeitamente resolver o problema da fome, não apenas a fome orgânica, mas as outras configurações de fome que possuímos, de conhecimento, de tecnologias sociais adequadas aos diferentes grupos, de modernidade e tudo que ela pode representar em matéria de liberdade.
A impressão mais forte que fica é de que em que pese termos avançado tanto, agora andamos para trás, não como um exercício saudável de desconstrução e reterritorialização, mas como um distanciamento do que alcançamos para nos tornar um tanto bárbaros, aculturados, analfabetos.

Juliete Oliveira

Palmas/TO, 25 de maio de 2017

sábado, 20 de agosto de 2016

Democracia emparedada

                                                          heyshambles.tumblr.com



Com quem anda a democracia? Quem são os seus fiéis detentores? Em que solo pisa a senhora democracia? Não mexe comigo, que eu não ando só, / Eu não ando só, que eu não ando só. / Não mexe não! (Maria Bethânia). O trecho da bela canção de Bethânia nos fala das boas companhias de quem não anda só, durante muito tempo a palavra democracia foi um xingamento por caraterística de origem, em que, nem todos, estavam abrigados no seu guarda-chuva. O famoso discurso de Péricles que sugeriu pela primeira vez ser a democracia o governo “do povo, pelo povo e para o povo”, o que poderia ser traduzida por: a distribuição equitativa do poder de tomar decisões coletivas e o julgamento dos cidadãos quanto ao processo de tomada dessas decisões e os seus resultados. A democracia nunca esteve só!

É por aí que anda a democracia? Nos tempos que correm, ela se transformou por herança de décadas anteriores, em uma espécie de objeto colonizado do discurso individualista. “Os códigos fundamentais de uma cultura — aqueles que regem sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a hierarquia de suas práticas — fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar. ” (Michel Foucault – As Palavras e as Coisas). É democrático ter acesso a bens de consumo, é democrático ter um comportamento fora dos padrões, é democrático criticar esquemas que oferecem direito a políticas públicas, ou ainda, a própria existência destas, como viés de acesso para grupos antes negligenciados. É democrático, não ser democrático. Ainda com Foucault, a relação da palavra com o signo é uma relação infinita. Não que a palavra seja imperfeita e esteja, em face da representação, num deficit que em vão se esforçaria por recuperar. Só que o signo, foi por assim dizer, capturado pela experiência do “real” em que segundo Jacques Rancière, a democracia não representaria mais liberdade e igualdade junto as instituições de estado, mas seria encarnada nas próprias formas de vida material e de experiência sensível.

Ora pois, se o signo que antes era a mais alta representação de abrangência e isonomia, não sem antes passar por intermináveis testes de adaptação cultural, e ser, ele mesmo, responsável por derivar e sustentar mudanças “culturais”, passa a ser uma mera referência a preferências e gostos individuais, há algo de muito doentio em todo o resto. O que se observa, é o esvaziamento literal do que quer, de fato expressar a palavra democracia, se avizinhando da conveniência, das influências, das paixões, oferecendo margem para energias febris que se ativam na cena política, desviando-a para a busca da prosperidade material, da felicidade privada e para os laços societários, já conhecida de Aristóteles a partir de Lisístrata em a “A greve do sexo” de Aristófanes, que busca neutralizar as formas de interação social mais afeitas à efetivação do estado democrático de direito. Essa verdadeira promoção do que é privado e individual, promovida pela mídia, sobretudo, tem o efeito devastador de tornar os cidadãos indiferentes ao bem público e minar a autoridade de governos, desviando as atenções do poder instituído paras responder demandas reiteradas que emanam da sociedade.

Em O ódio à democracia Jacques Rancière explicita o paradoxo democrático tido por alguns especialistas como “o reino dos excessos”, que leva a ruína o governo democrático. Opa! Não é, a algo assim que estamos assistindo? Uma enorme quantidade de garantias para individualidades – sobretudo, para aqueles que se setem aptos a pagar por qualquer coisa –, em que, tudo absolutamente tudo, é colocado à serviço de garantir direitos, a quem já tem todo direito. Ainda há pouco, uma das maiores iniciativas da sociedade, na tentativa de frear um pouco, a insaciável sede de poder de determinados grupos políticos: a “Lei da Ficha Limpa”, foi classificada por um dos maiores jurista brasileiro, como o resultado do trabalho de bêbados.

Lembro muito bem, de toda a energia empenhada pela sociedade organizada para reunir assinaturas que levassem o Projeto de Lei a ser votado nas instâncias necessárias a sua legalização, não foram poucas campanhas publicitárias, na mídia alternativa, para arregimentar cerca de 1,4 milhão de assinaturas e patrocinado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), duas instituições que ainda gozam de certo respeito e respaldo para se posicionarem quando é necessário garantir direitos democráticos.

O emparedamento da democracia a coloca como um apetrecho que é portado por políticos de toda monta. De tanto ser usada como referência até mesmo do que ela não representa, se transformou em um espelho que reflete ao contrário, uma similitude mal confeccionada de si mesma. Com voracidade essa democracia é consumida em equivalência, ou afirmação ilimitada de poder material e regurgita ingenuidade ou cinismo para fortalecer os indivíduos democráticos e seus processos de legitimação  


Juliete Oliveira
Palmas/TO, agosto de 2016

segunda-feira, 11 de abril de 2016

"Instituições e políticas determinam se a nação vai fracassar ou não"


Professor da Harvard Kennedy School, aponta as causas dos limites do desenvolvimento brasileiro
por Marcos de Aguiar Villas-Bôas — publicado 11/04/2016 04h25
Aposentados
A Previdência está por ser discutida, enquanto o Bolsa Família é um sucesso
O brasileiro Filipe Campante, professor associado de Políticas Públicas da Harvard Kennedy School, uma das principais escolas de política e administração públicas, negócios e economia, integra um grupo mundial de especialistas dedicados ao estudo das relações entre instituições políticas, inclusão social, democracia e crescimento.
Políticas públicas corretas são fundamentais, mas exigem boas instituições e quanto mais inclusivas forem, melhor sucedido é o país, explica Campante na entrevista a seguir.
CartaCapital: Muitos especialistas, entre eles Daron Acemoglu, do Massachusetts Institute of Technology, e James Robinson, da Universidade de Chicago, defendem que, apesar de boas políticas públicas serem fundamentais, um país precisa, antes de mais nada, ter boas instituições. Qual é a diferença entre instituições e políticas públicas, e que importância tem cada uma delas?
Filipe Campante: Esse ponto de vista é realmente muito influente no debate acadêmico e, cada vez mais, na discussão de políticas públicas. As instituições são o cenário, as regras do jogo que demarcam as políticas públicas e das quais elas emergem. Falamos mais até do que de mudanças nas áreas tributária e da previdência, de reformas como aquela chamada no Brasil de política.
Não se trata, porém, só do ponto de vista de como são eleitos os deputados ou quais os poderes do Congresso e do presidente, qual o sistema partidário, entre outros pontos. Deve-se pensar como tudo isso vai refletir nos incentivos econômicos dados à sociedade, algo que Acemoglu e Robinson ressaltam bastante.
Eles enfatizam a necessidade de ter-se uma proteção ampla ao direito de propriedade. Acho que esse é um exemplo importante no debate brasileiro, por romper um pouco com essa dicotomia de esquerda e direita, onde, de um lado, se protegeria os interesses do capital e do outro, aquele dos oprimidos.
Quando falamos do direito de propriedade, não se trata de proteger as grandes empresas, mas de proteção ampla a toda a população, para permitir que os indivíduos possam se apropriar dos frutos dos seus esforços, dos seus investimentos, do seu trabalho. O conjunto das instituições e das políticas públicas em interação é o que vai determinar se as nações vão fracassar ou não.
Filipe-Campante
A história determina as escolhas sociais, mas há maneiras de mudar a trajetória, diz Campante
CC: Acemoglu e Robinson argumentam também que o passado determina as instituições e políticas do presente, mas é possível remodelá-las no rumo de um futuro melhor. Eles citam exemplos, inclusive do Brasil, em que as formas de relações entre colonizadores e colonizados definiram o que seriam as nações. Aquelas com instituições mais inclusivas, que permitiram a ascensão de um número maior de indivíduos, obtiveram mais sucesso. O senhor concorda com o argumento?
FC: Eu concordo. Existe um debate acadêmico muito intenso sobre até que ponto esse aspecto institucional explica as diferenças entre os países. Isso é algo ainda em aberto e faz parte do meu trabalho acadêmico, mas, de forma geral, me parece bastante persuasiva a ideia de que o ambiente institucional e o grau de inclusão da proteção do direito de propriedade é fundamental para entender o desempenho econômico dos diferentes países.
Essa visão enfatiza fortemente o legado histórico, a ideia que você mencionou de diferentes tipos de colonização terem consequências que persistem ao longo do tempo. Em outras palavras, se o sistema colonial foi implantado de forma a proteger os direitos de propriedade da população como um todo, ou de uma minoria, de uma elite reduzida.
Isso importa, mas não é um destino incontornável. A história condiciona as escolhas sociais disponíveis, contudo há formas de mudar e existem lições importantes aí para o debate político no Brasil.
Herança
A herança do Brasil Colonial e aquela da Declaração da Independência dos EUA condicionaram opções sociais distintas (Foto: Debret e Deagostini)
CC: O Bolsa Família está no centro das discussões políticas e econômicas no Brasil, representa uma política pública inclusiva e centraliza também o debate entre os graus de intervenção do Estado para garantir direitos, algo que o mercado, por si, não permite. Qual é a sua opinião sobre esse assunto?
FC: Há dois aspectos a considerar, na minha opinião. Um deles é o Bolsa Família enquanto política que se propõe a distribuir renda e compor uma rede de proteção social. Acho que há, em larga medida, um consenso entre os especialistas, independentemente dessa caricatura negativa no Brasil, de que é um triunfo de política pública para além do debate de quem o criou. É triste que isso se perca no debate político, ao invés de se reconhecer que esse é um triunfo do Estado Brasileiro.
É um programa meritório, pois atinge os indivíduos que realmente precisam, é relativamente pouco custoso do ponto de vista operacional, gera poucas distorções econômicas e nós, economistas, somos a favor de se distribuir renda concedendo dinheiro de fato, dar a oportunidade de os cidadãos gastarem como bem entenderem. Outro aspecto tem a ver com as implicações institucionais de políticas como o Bolsa Família, ou seja, como a redistribuição de renda afeta a distribuição do poder político.
No Brasil, desde a redemocratização há uma relação entre renda e a participação no poder político a refletir que, quando se distribui renda, se dissemina também a consciência de que alguém informado pode participar mais efetivamente do resultado desse processo.
Por que ninguém questiona hoje o Bolsa Família? Porque não se pode ser contra esse programa e ganhar uma eleição. Isso ilustra uma dinâmica institucional positiva no sentido de olhar o Brasil num prazo longo. Eu acho que há um fortalecimento institucional que anda de mãos dadas com a necessidade de inclusão no nosso País.
CC: O que falta para o Brasil avançar na inclusão? Seria uma democratização em termos de capital humano?
FC: O Brasil tem há séculos uma deficiência em termos de capital humano, mas houve ganhos na área do ensino básico e redução do analfabetismo nos últimos anos, ainda que exista um gargalo gigantesco em relação à qualidade da educação, extremamente baixa, e isso limite a produtividade.
Mas essa é a parte difícil. Até pouco tempo atrás, eu achava que o Brasil tinha se graduado em termos de política econômica, em relação ao combate à hiperinflação e o início do desenvolvimento macroeconômico.
Parecia o momento de se fazer escolhas difíceis, ou seja, onde vamos investir, como investir em capital humano, etc. Infelizmente, voltamos um pouco ao mundo da UTI, de pensar como vai ser feito o trabalho do crescimento econômico, e o capital humano é uma parte fundamental disso, sem dúvida.
Bolsa-Família
O Brasil tem há séculos uma deficiência em termos de capital humano, apesar dos avanços recentes (Foto: Edson Silva/Folhapress)
CC: Há quem diga que o Brasil comemorou em excesso o bom desempenho no início deste século e agora exagera na autocrítica, neste momento de crise.
FC: Houve uma euforia exagerada naquela época e parece que falamos de muito tempo atrás, mas trata-se de três ou quatro anos. Existia um clima de otimismo exacerbado, do “dessa vez é diferente”.
Se agora existe um pessimismo exagerado, é difícil avaliar no calor do momento, mas acho que parte do sentimento negativo de agora vem um pouco da decepção de ter-se deixado levar e de se imaginar como imune a qualquer surpresa.
Sob a ótica do “copo meio cheio, meio vazio”, entretanto, existe agora uma expectativa negativa um tanto exagerada. Parte da reação aos escândalos de corrupção é de um grau de amadurecimento institucional notável.
CC: Haveria no Brasil uma insistência em discutir se o Estado deveria intervir mais ou menos na economia, em vez de se debater quais são os benefícios e custos de cada intervenção?
FC: Num sentido meio trivial, sim. Seria necessário avaliar as intervenções em termos de política e verificar se os benefícios superam os custos, e apenas insistir naquelas que passam nesse teste. É preciso, no entanto, tratar a avaliação daquelas políticas como uma parte essencial desse processo, que ainda não ocorre.
Quando você implanta alguma intervenção, como uma participação do BNDES, qual a avaliação, quais os seus efeitos em detalhes? Quando as escolhas são feitas, com ou sem intervenção, tem-se custos e benefícios. Isso é fundamental, mas perde-se de vista, muitas vezes, no Brasil. Todos são favoráveis à melhora da educação, mas, para isso ocorrer, existirão custos.
Haverá necessidade de mais recursos, eles terão de vir de algum lugar e é isso que não se leva em conta, frequentemente, no debate político no Brasil. Passa-se a crer num mundo mágico onde seria possível viver sem ter de fazer escolhas, e essas são, realmente, decisões muito difíceis. Não há qualquer medida que cause só efeitos positivos.
CC: No Brasil, discute-se a necessidade de uma reforma da previdência e diz-se que direitos dos trabalhadores serão restringidos pelo governo. Qual a sua opinião sobre essa reforma?
FC: O Brasil gasta em previdência o mesmo que a França ou o Japão, mas estes são países mais ricos e com população mais velha. Não se pode esperar que um país no qual os trabalhadores se aposentam aos 50 e poucos anos cresça a uma taxa anual de 4% ou 5%.
Indivíduos que contribuíram com a expectativa de se aposentar com determinada idade, após a reforma, não poderiam mais fazê-lo. É possível defender determinadas políticas, mas é preciso ser honesto em relação às escolhas.
*Publicado originalmente na edição 893 de CartaCapital, com o título "Déficit humano"