O brasileiro Filipe Campante, professor associado de Políticas Públicas da Harvard Kennedy School, uma das principais escolas de política e administração públicas, negócios e economia, integra um grupo mundial de especialistas dedicados ao estudo das relações entre instituições políticas, inclusão social, democracia e crescimento.
Políticas públicas corretas são fundamentais, mas exigem boas instituições e quanto mais inclusivas forem, melhor sucedido é o país, explica Campante na entrevista a seguir.
CartaCapital: Muitos especialistas, entre eles Daron Acemoglu, do Massachusetts Institute of Technology, e James Robinson, da Universidade de Chicago, defendem que, apesar de boas políticas públicas serem fundamentais, um país precisa, antes de mais nada, ter boas instituições. Qual é a diferença entre instituições e políticas públicas, e que importância tem cada uma delas?
Filipe Campante: Esse ponto de vista é realmente muito influente no debate acadêmico e, cada vez mais, na discussão de políticas públicas. As instituições são o cenário, as regras do jogo que demarcam as políticas públicas e das quais elas emergem. Falamos mais até do que de mudanças nas
áreas tributária e da
previdência, de reformas como aquela chamada no Brasil de política.
Não se trata, porém, só do ponto de vista de como são eleitos os deputados ou quais os poderes do Congresso e do presidente, qual o sistema partidário, entre outros pontos. Deve-se pensar como tudo isso vai refletir nos incentivos econômicos dados à sociedade, algo que Acemoglu e Robinson ressaltam bastante.
Eles enfatizam a necessidade de ter-se uma proteção ampla ao direito de propriedade. Acho que esse é um exemplo importante no debate brasileiro, por romper um pouco com essa dicotomia de esquerda e direita, onde, de um lado, se protegeria os interesses do capital e do outro, aquele dos oprimidos.
Quando falamos do direito de propriedade, não se trata de proteger as grandes empresas, mas de proteção ampla a toda a população, para permitir que os indivíduos possam se apropriar dos frutos dos seus esforços, dos seus investimentos, do seu trabalho. O conjunto das instituições e das políticas públicas em interação é o que vai determinar se as nações vão fracassar ou não.
- A história determina as escolhas sociais, mas há maneiras de mudar a trajetória, diz Campante
CC: Acemoglu e Robinson argumentam também que o passado determina as instituições e políticas do presente, mas é possível remodelá-las no rumo de um futuro melhor. Eles citam exemplos, inclusive do Brasil, em que as formas de relações entre colonizadores e colonizados definiram o que seriam as nações. Aquelas com instituições mais inclusivas, que permitiram a ascensão de um número maior de indivíduos, obtiveram mais sucesso. O senhor concorda com o argumento?
FC: Eu concordo. Existe um debate acadêmico muito intenso sobre até que ponto esse aspecto institucional explica as diferenças entre os países. Isso é algo ainda em aberto e faz parte do meu trabalho acadêmico, mas, de forma geral, me parece bastante persuasiva a ideia de que o ambiente institucional e o grau de inclusão da proteção do direito de propriedade é fundamental para entender o desempenho econômico dos diferentes países.
Essa visão enfatiza fortemente o legado histórico, a ideia que você mencionou de diferentes tipos de colonização terem consequências que persistem ao longo do tempo. Em outras palavras, se o sistema colonial foi implantado de forma a proteger os direitos de propriedade da população como um todo, ou de uma minoria, de uma elite reduzida.
Isso importa, mas não é um destino incontornável. A história condiciona as escolhas sociais disponíveis, contudo há formas de mudar e existem lições importantes aí para o debate político no Brasil.
- A herança do Brasil Colonial e aquela da Declaração da Independência dos EUA condicionaram opções sociais distintas (Foto: Debret e Deagostini)
CC: O Bolsa Família está no centro das discussões políticas e econômicas no Brasil, representa uma política pública inclusiva e centraliza também o debate entre os graus de intervenção do Estado para garantir direitos, algo que o mercado, por si, não permite. Qual é a sua opinião sobre esse assunto?
FC: Há dois aspectos a considerar, na minha opinião. Um deles é o Bolsa Família enquanto política que se propõe a distribuir renda e compor uma rede de proteção social. Acho que há, em larga medida, um consenso entre os especialistas, independentemente dessa caricatura negativa no Brasil, de que é um
triunfo de política pública para além do debate de quem o criou. É triste que isso se perca no debate político, ao invés de se reconhecer que esse é um triunfo do Estado Brasileiro.
É um programa meritório, pois atinge os indivíduos que realmente precisam, é relativamente pouco custoso do ponto de vista operacional, gera poucas distorções econômicas e nós, economistas, somos a favor de se distribuir renda concedendo dinheiro de fato, dar a oportunidade de os cidadãos
gastarem como bem entenderem. Outro aspecto tem a ver com as implicações institucionais de políticas como o Bolsa Família, ou seja, como a redistribuição de renda afeta a distribuição do poder político.
No Brasil, desde a redemocratização há uma relação entre renda e a participação no poder político a refletir que, quando se distribui renda, se dissemina também a consciência de que alguém informado pode participar mais efetivamente do resultado desse processo.
Por que ninguém questiona hoje o
Bolsa Família? Porque não se pode ser contra esse programa e ganhar uma eleição. Isso ilustra uma dinâmica institucional positiva no sentido de olhar o Brasil num prazo longo. Eu acho que há um fortalecimento institucional que anda de mãos dadas com a necessidade de inclusão no nosso País.
CC: O que falta para o Brasil avançar na inclusão? Seria uma democratização em termos de capital humano?
FC: O Brasil tem há séculos uma deficiência em termos de capital humano, mas houve ganhos na área do ensino básico e redução do analfabetismo nos últimos anos, ainda que exista um gargalo gigantesco em relação à qualidade da educação, extremamente baixa, e isso limite a produtividade.
Mas essa é a parte difícil. Até pouco tempo atrás, eu achava que o Brasil tinha se graduado em termos de
política econômica, em relação ao combate à hiperinflação e o início do desenvolvimento macroeconômico.
Parecia o momento de se fazer escolhas difíceis, ou seja, onde vamos investir, como investir em capital humano, etc. Infelizmente, voltamos um pouco ao mundo da UTI, de pensar como vai ser feito o trabalho do crescimento econômico, e o capital humano é uma parte fundamental disso, sem dúvida.
- O Brasil tem há séculos uma deficiência em termos de capital humano, apesar dos avanços recentes (Foto: Edson Silva/Folhapress)
CC: Há quem diga que o Brasil comemorou em excesso o bom desempenho no início deste século e agora exagera na autocrítica, neste momento de crise.
FC: Houve uma euforia exagerada naquela época e parece que falamos de muito tempo atrás, mas trata-se de três ou quatro anos. Existia um clima de otimismo exacerbado, do “dessa vez é diferente”.
Se agora existe um pessimismo exagerado, é difícil avaliar no calor do momento, mas acho que parte do sentimento negativo de agora vem um pouco da decepção de ter-se deixado levar e de se imaginar como imune a qualquer surpresa.
Sob a ótica do “copo meio cheio, meio vazio”, entretanto, existe agora uma expectativa negativa um tanto exagerada. Parte da reação aos escândalos de corrupção é de um grau de amadurecimento institucional notável.
CC: Haveria no Brasil uma insistência em discutir se o Estado deveria intervir mais ou menos na economia, em vez de se debater quais são os benefícios e custos de cada intervenção?
FC: Num sentido meio trivial, sim. Seria necessário avaliar as intervenções em termos de política e verificar se os benefícios superam os custos, e apenas insistir naquelas que passam nesse teste. É preciso, no entanto, tratar a avaliação daquelas políticas como uma parte essencial desse processo, que ainda não ocorre.
Quando você implanta alguma intervenção, como uma participação do BNDES, qual a avaliação, quais os seus efeitos em detalhes? Quando as escolhas são feitas, com ou sem intervenção, tem-se custos e benefícios. Isso é fundamental, mas perde-se de vista, muitas vezes, no Brasil. Todos são favoráveis à melhora da educação, mas, para isso ocorrer, existirão custos.
Haverá necessidade de mais recursos, eles terão de vir de algum lugar e é isso que não se leva em conta, frequentemente, no debate político no Brasil. Passa-se a crer num mundo mágico onde seria possível viver sem ter de fazer escolhas, e essas são, realmente, decisões muito difíceis. Não há qualquer medida que cause só efeitos positivos.
CC: No Brasil, discute-se a necessidade de uma reforma da previdência e diz-se que direitos dos trabalhadores serão restringidos pelo governo. Qual a sua opinião sobre essa reforma?
FC: O Brasil gasta em previdência o mesmo que a França ou o Japão, mas estes são países mais ricos e com população mais velha. Não se pode esperar que um país no qual os trabalhadores se aposentam aos 50 e poucos anos cresça a uma taxa anual de 4% ou 5%.
Indivíduos que contribuíram com a expectativa de se aposentar com determinada idade, após a reforma, não poderiam mais fazê-lo. É possível defender determinadas políticas, mas é preciso ser honesto em relação às escolhas.
*Publicado originalmente na edição 893 de CartaCapital, com o título "Déficit humano"