1.
“Certa
manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua
cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” A Metamorfose, Franz Kafka
Eu vi o encontro de Dante com Kafka! Foi um
casual encontro num fim de rua, de uma casa do sertão central, entre um menino
e um livro. Essa visão reuniu ali não apenas duas pessoas, mas dois mundos que
se rastreavam, tendo como bússola sequer a mudança das estações. Aos seis anos,
Dante, o menino, consegue avistar as pegadas lendárias, muito mais como uma
investida que um e outro esperava, e que também a mim me fez conjecturar sobre
novas e intrigantes considerações em torno do que acontece se de repente alguém
se desloca ao lado de um grão de luz.
Eu presente-fiquei
que de todos os entomologistas do século XX, incluído aí Nabokov, ou mesmo
Joyce, Woolf, Faulkner ou Eliot, foi Kafka o que mais radicalmente soube o que
é o ambiente. Ele fez o corpo de um inseto triunfar sobre a obscuridade de
galáxias inteiras prestes a perecer.
Tudo está remagnetizado e não consumado!
E esse ato de ligação entre natureza e animal
como fundamento do ligado, do conectado, do sentir o ambiente a partir de
fluxos que não mais o plasmático, de poder ver não mais com a órbita ocular e sim
com a energia de um corpo de inseto, capaz de explodir o mundo convencional
para fazer florescer ambientes promissores onde seja possível experimentar
fluxos outros que não se ligam apenas por sílabas, silvos, balbucios, onomatopeias.
Voltamos a fazer parte de um mundo em que não
faremos esvaecer essa ondem antiga, tanto da vida real quanto da vida dos
sonhos? Ou alçamos de novo o que não pode ser pego? O que é o território do
invertebrado para o vertebrado? E se as relações entre animal e natureza não
forem mais rigorosamente bilaterais, se já se encontram irrecuperáveis?
Kafka não poderia de forma alguma
apaixonar-se por música ou empreender viagem aos mares do Sul ou a seu ego. Sem
ser afeito à racionalidade, Kafka volta-se para o indizível, ou seja, não
escreve tão-somente livros, sequer ficções. Kafka ultrapassa o contador de
histórias habitual, aquele que tão bem seleciona trechos a que leitores terão
acesso numa livraria de bairro, suas próprias histórias intercaladas aí. Ao contrário
disso, Kafka argumenta, desencadeia ideias, ele mesmo desde sempre “sem poder
mover-se do lugar”, é o mais voraz que pode um escritor, ou para que entendam,
é hardcore: faz Gregor Samsa vislumbrar muito mais do que o mero despertar do
que a todos sufoca e aliena em meio ao “sono agitado” na névoa social
industrializada. O despertar, em Kafka, implica em fazer um novo uso dos fluxos
de percepção e consciência, estes sim a operar a transição a um mundo que se
inventa.
Sua análise reflexiva a partir de uma nova
experiência do mundo remonta o sujeito a uma condição de possibilidade distinta
e adversa dele mesmo, e empreende uma síntese cultural construída como aquilo
sem o que não haveria mundo. Como objeto do mundo e tendo que suportá-lo como a
uma paternidade nefasta, ele se transveste no incognoscível. Não se transforma
em um vingador, num bom samaritano ou num homem do capital. Transforma-se
naquilo que ninguém, nem o mais desprezível dos indivíduos pensaria em ser. Um
repugnante inseto. Assim, a reflexão arrebata-se a si mesma e se recoloca em
uma subjetividade invulnerável, para além do ser e do tempo.
O tempo aqui não é mais senhor de si, e nem
muito menos fator determinante, ele obedece aos círculos próprios do reino à
que o inseto se filia. Crescer aqui poderá não significar “viver”, uma vez que
se trata de um inseto adulto e os deslocamentos próprios do crescimento não
foram experimentados, pois que, num sentido inverso, a cada instante eu
fantasio acerca de coisas como uma criança. Estas coisas estão dentro de nós e
queremos que saiam. Imagino objetos ou pessoas cuja presença aqui não seria
incompatível com o contexto, e, todavia elas não se misturam ao meu mundo. Daí
pensar ter promovido o encontro entre Dante e Kafka, o menino e a lenda, ainda
que se saiba que no decorrer dos fatos, Dante arquitetou tudo a Kafka, criou as
condições geográficas ao desenvolvimento de espécimes como Kafka, pensou o
cimento que daria liga ao universo de seu póstero.
Como experimentar a partir do corpo todas as
sensações do ambiente, senão ao andar sobre filamentos e voar com asas vestigiais,
com cabeça que aponta para baixo, quase como se ela tivesse
sido criada para dar marteladas?
O corpo do inseto fala também sobre as
sensações atmosféricas, poluição sonora, lixo, da água, das bacias
hidrográficas, vegetação, fauna, e pode ainda falar das concentrações
demográficas, dos diferentes territórios, da desterritorialização, das
diferenças sociais, do mercado de câmbio, da movimentação da bolsa, da produção
de arroz, de soja, da criação de gado, da construção de hidroelétricas,
termoelétricas, usinas nucleares, dos poços de petróleo, da fome, das doenças
de veiculação hídrica, da legislação ambiental, do código florestal, das
florestas ou da inexistência delas, dos desertos, da desertificação, das
calotas polares, do buraco de ozônio, das emissões de gases poluentes, das
pegadas, do trabalho escravo, da questão de gênero, da mortalidade infantil, do
proletariado, da luta pela terra, da luta por pão, por direitos, por direitos
étnicos, dos conflitos de interesse, dos conflitos, da educação,
educomunicação, da alfabetização, do letramento, da questão marítima e de sua poluição,
das chuvas ácidas, dos índices pluviométricos baixos ou altos, das enchentes,
dos desmoronamentos, dos deslocamentos populacionais, da diáspora, dos
terremotos e das placas tectônicas, dos vulcões e dos seus adormecimentos, dos
tsunamis, do conforto visual, atmosférico, ambiental, da ecologia social,
mental e ambiental... O seu corpo não substitui a "teoria periférica"
por uma "teoria central", ele sente com todas as suas conexões
radicais um outro mundo de sustentabilidades.
Se a realidade de minha percepção estivesse
fundada apenas na coerência intrínseca das "representações", ela
deveria ser sempre hesitante e, abandonado às minhas conjecturas prováveis, eu
deveria a cada momento desfazer sínteses ilusórias e me reintegrar ao real,
como um estranho dentro do seu próprio corpo.
O pequeno Dante na casa de fim de rua, no
sertão central brasileiro, apalpa as folhas da publicação em que Kafka se
distende em sua endo condição de ver
o mundo. Ler agora, quase cem anos depois, o que Gregor Samsa sentiu
organicamente em sua nova condição de vida e mundo, é para Dante uma brincadeira
de criança: sentar-se quieto e verter os seus efluentes quando tem nas mãos
aquela delirante e tão verdadeira possibilidade. Esta seria a constatação eloquente
da próspera herança da sua invenção, ou os sonos hipnóticos encalham, de fato,
as paisagens perigosas?
2.
“É proibida a entrada
a quem não estiver espantado de existir.”
(cartaz afixado no muro que separa a aldeia de Chora-Que-Logo-Bebes da Floresta
Branca)
Quando Raquel Carson gerou a Primavera Silenciosa, ela o fez com o
seu corpo para produzir uma fábula para o amanhã... É esta fábula que não se interpreta,
nem se compreende, que constitui a passagem estreita às águas de superfície e mesmo
aos mares subterrâneos: enormes corpos não diferenciados, interligados,
igualmente ameaçados pelo elixir da morte. Que tudo pare um momento, tudo se
cristalize (depois, tudo recomeçará). E no ambiente algo se cristaliza?
Pode ser que sim, pode ser que não. Para uma cigarra o corpo é todo melodia,
existindo para dar sentido a círculos que não pertencem unicamente ao indivíduo
cigarra, seus conectores demasiadamente ligados, uma vez que os objetos
parciais, são ainda, demasiado orgânicos.
A cigarra existe única e exclusivamente para
ser um contralto, como Raquel em um mundo idealizado por Kafka pode ser
ofendida pelos outros habitantes através de suas criações químicas de defesa?
Justamente porque seu corpo de inseto pleno, sem órgão de anatomia humana, é
improdutivo, estéril a outras funções que não o canto que anuncia coisas
necessárias como a primavera, nesta condição de cigarra ela é mesmo o
engendramento, o inconsumível. Quem precisa de cigarras? De seu ensurdecedor
canto renitente? De sua melodia para afetar formigas? Toda uma rede de
possibilidades ambientais, uma emoção, uma circunstância. O corpo sofre por
estar assim organizado. Sair dos reinos do solo, ganhar asas e na copa das
árvores, onde emiti um som para atrair a fêmea e depois gerar vida. Existe aqui
um condicionamento para esse corpo, uma pré-condição, um existir entre grades,
quais as chances de defesa no ambiente de uma cigarra? O silêncio implacável. Quando
nem mesmo os pássaros cantam.
O que foi Kafka para a cigarra Raquel? O
enxofre, a criação surreal de todos os produtos sistêmicos em uma tela de Dali,
ou Bosch, sem Kafka as cigarras simplesmente existiriam independente de sua
prisão corpórea. O que exclui a hipótese de uma verdadeira anestesia e sugere a
de uma recusa da deficiência é Raquel existir e ser cigarra.
No território em que coexistem baratas,
besouros e cigarras aí também é o território da educação, seja ela ambiental,
social, patrimonial, para a água, para os gases, venha com que vestimenta vier,
aqui cada atomozinho que seja faz parte da mesma complexidade, corrobora para
os mesmos resultados, sejam danosos ou não ao seu meio comum.
Num ambiente em que a água gera mais
expectativa do que em outros lugares do planeta, representando não propriamente
a vida, mas a inexistência dela, a pedra deverá para o corpo também ser água,
inseto, energia, tudo mais tarde restituído ao carbono que seremos. Aqui se vai
ver como os fatos são ambíguos, e toda experiência animal, vegetal e mineral
são cruciais e nenhuma explicação é definitiva. Agora devo pensar com o meu
corpo constituído de toda matéria frente os grandes discursos da complexidade, muitas
vezes esvaziados de corporeidades, da energia que faz a roda da fortuna não
parar de se mover. Seremos refém desse movimento?
O jogo entre Dante e Kafka continua, Raquel
entrou no jogo, cada um ao seu modo, antecipando informações que gerarão e geram
mais informação, repercutem, esgarçam os tecidos dos ambientes, provocam. Os
dois primeiros estiveram presentes em muitos debates nos centros do
conhecimento no último século; ela alimentou o cerne de uma comoção mundial na
busca por resposta de como viver em harmonia. Será possível?
Quem agride quem, homem ou natureza? Quem é
mais predador? Quem devora quem? Quem tem direito sobre o outro? Absolutamente
todos os campos do conhecimento se envolveram com a cigarra Raquel tanto quanto
nenhum centro de filosofia mundo a fora pôde abrir mão de reconhecer a existência
do demônio Dante e do inseto Kafka. Mas que ninguém se engane, isso não tem
nada ver com êxito ou sucesso. O que isso sugere são somas, números e ter
sempre alguém a apertar os botões das engrenagens do mundo.
Falta a esse jogo um integrante, que se
deverá acrescentar aqui, um poeta local, mas fora do lugar, sobretudo porque
não quis ser apenas mais um lírico interessante, mas aquele que será capaz de
visualizar as relações espaciais entre os objetos e de seus caracteres
geométricos com um olhar de cão, mas não qualquer cão, um vira latas, um que se
danou, que viveu num bolso de rio, numa cova, sem plumas poéticas.
3.
“Você
gosta desse jardim que é seu? Evite que os seus filhos o destruam!” Sob o
Vulcão, Malcolm Lowry
“O verbo ser, misto de atribuição e de
afirmação, cruzamento do discurso com a possibilidade primeira e radical de
falar, define a primeira invariante da proposição, e a mais fundamental. Ao
lado dele, de uma parte e de outra, elementos: partes do discurso ou da “oração”.
Essas regiões são ainda indiferentes e determinadas apenas pela figura tênue,
quase imperceptível e central que designa o ser; funcionam, em torno desse
“julgador”, como a coisa a julgar — o judicande,
e a coisa julgada — o judicat.” (Michel Foucault, As Palavras e as Coisas).
Nesse único livro
João Cabral de Melo Neto trata a linguagem como visceral (oposição a cerebral),
o estômago do cão a se revirar e revoltar-se com o meio. A farejar irresoluto
qualquer possibilidade. No nordeste uma geomorfologia do ambiente é toda árida
para o cachorro, ele não é como os outros animais ditos “adaptados”, capazes de
se transfigurar em outras coisas para resistir aos inclementes meses de sazonalidade
radial que os afronta. É aí que o cão como um rio se distende. Ele é todo faro,
penetra fundo na terra em uma adesão que possibilita compensar as oscilações
climáticas, seu corpo adquire um poder precioso sobre os obstáculos, mesmo que
esse poder não seja total; ele é sim coberto por fragilidades, externalidades
que o expõe mais que a um calango – pele grosa, escamosa mesmo, enfrenta os
espinhos da caatinga como couraça –, mas para o cão do semi-árido “perceber” já
é envolver de um só golpe todo um devir de experiências num presente que, a
rigor, não o garante nunca. Vivo até quando?
Volto, repenso:
como os rios pode um cachorro ser intermitente? Se permitir desaparecer na seca,
reaparecer no inverno? E qual a regularidade do ser vivo para a inclemência das
estações aqui? Existem certezas nesse mundo em geral, mas não das coisas em
particular. Aqui é a coisa em particular que faz toda a diferença.
O ventre triste do
cão atravessa incólume pequenos vilarejos, um quilombo, um assentamento. Ele
mesmo não tem assento em parte alguma. Pode por vezes se deter no vôo impreciso
de uma borboleta e admirar-lhe as asinhas ligeiras, o colar furta-cor a lembrar
do arco-íris, as belas flores da catingueira formando alamedas imensas, quase
como se fossem dar voltas à terra em uma brincadeira infantil de carrossel – ou
ainda, um rio caudaloso de amarelo forte, um quadro, uma pintura, um filme. Há
um esgotamento, uma fadiga aí, mas já houve épocas piores e muito mais terríveis.
Dessa vez ainda, se comparado ao rio, pode o cão, como a paisagem, adquirir transfiguração,
transmutar-se – resistir à extrema carência de tudo ali ser.
A postura
política patriarcal que guiou certa literatura social e as cartografias
geopolíticas expressas a partir das casas-grandes
e senzalas, menos do que um pensar e
mais um indagar que em nada altera a rotina e ainda mais zelam pelo patrimônio
tradicional de seus salões e vastas propriedades, chegariam ao fim algum dia
também para ele? Se é que se pode admitir a um cão sentir ou raciocinar,
tivesse o cão um chão, um lugar algum seu que não aquele de outro dono e de
tanta disputa presente-ficado pela
cadela Baleia: “Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria
acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se. Sentiu o cheiro bom dos
preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de
outros viventes” (Graciliano Ramos, Vidas Secas).
Ter saído de um
parto como os outros mamíferos da terra não lhe confere nenhuma vantagem, ou
privilégio. É a este corpo que será preciso proteger, de um modo
quase médico. Com o branco da lucidez médica, da higiene médica, mas esse parto
é ainda mais extenso, fluente, povoado – é preciso proteger também no Nordeste,
o que é Brasil, as pessoas, os vultos quase que elas são. Pelo que o cão serve
a esse papel de guardar o outro, os bens, e expor a si, como aquele que não
terá nada a perder. Inclusive esse é o jogo que há séculos se joga com
habilidade no Nordeste brasileiro: o perde-ganha, e invariavelmente mais que se
perde.
Para o clima, para a tempestade, para o sol,
para o sal, para o solo, para a água... Ah! Para a água. O ar também meio
perdido do nordestino. Para a vontade política ou para a ausência dela, para as
frentes de serviço, para o sistema de trabalho e emprego, para as rodovias, para
o corte de cana, para a carteira de trabalho, para a cesta básica, para tirar
pedras de um lado e colocar de outro, para o abandono familiar, para a
prostituição infanto-juvenil, para a gravidez na adolescência, para a morte
puerperal, para a morte infantil, para o aborto, para o sistema educacional, a
evasão escolar, o letramento, para droga, o tráfico de entorpecentes de animais
e de pessoas, o assassinato, a grilagem, a violência contra a mulher, a
corrupção em suas diferentes configurações e modos, no que o poder político
aqui tem de mais versátil e escabroso.
Acredita o cão, ou melhor, lhe diz o
instinto: a vegetação foi reduzida a esse confinamento da condição de bioma
pobre, incapaz de gerar riquezas, levada a se consumir em um sem número de
atividades degradantes, quase a se prostituir. Reconhecendo-se sempre como
aquela que só pode viver sob as condições ressequidas do solo salinizado,
servindo quase que exclusivamente ao fogo. Uma estética do calor a se contrapor
a outra do frio, em que se consome (não se é consumido) a vida num exercício
catártico sem fim? “A estrutura é essa designação do visível que, por uma
espécie de triagem pré-linguística, permite a ele transcrever-se na linguagem.
Mas a descrição assim obtida não é mais que um modo de nome próprio: deixa a
cada ser sua individualidade estrita e não enuncia nem o quadro a que ele
pertence, nem a vizinhança que o cerca, nem o lugar que ocupa. Ela é pura e
simples designação. E, para que a história natural se torne linguagem, é
preciso que a descrição se torne “nome comum” (Michel Foucault, As Palavras e as
Coisas).
O nome comum é o que incorpora vestimenta
própria na linguagem do sertão, como de todo lugar – o que é uma coisa aqui
pode em outro lugar ser outra, toda revestida de delicada conceituação e
sentido. A história natural tem como tarefa fundamental “a disposição e a
denominação”. Seria
a água daquele rio fruta de alguma árvore?
Algumas árvores na caatinga são capazes de chocar água em pequeninos ovos. O
cão já vira incontáveis vezes, por exemplo, o umbuzeiro derramar água de suas
pequenas frutas azedas, que se torna um delicioso néctar quando devidamente
preparada nas obesas cozinhas das casas de família. Uma iguaria. O caju de que se
extrai transparente refresco levemente amarelado, tão aprazível nos dias de sol
intenso. Uma única chuva é capaz de fazer com que as árvores engravidadas de
açúcar deem a luz, então ninguém poderá dizer que não pariram água.
É pelo desviar-se que a natureza se reinventa,
e reinventa reinventar-se em movimentos imprecisos do oblíquo, do não
correlato, do pouco comum, das veredas em curvas, do que no rio é serpentear-se
num desaguar. Para ir à cidade, o cão precisa escapar ao medo de um ambiente de
multidão, uma vez que o cão só habita o que o sertão lhe fornece: monturos,
cactos, quintais, ratos, pequenas cobras, cemitérios, crianças, igrejas.
Daí que talvez desminta a figura do retirante
há décadas tatuada ao corpo do sertanejo. Como não tem um dono, não quer ir, é
livre e cativo ao mesmo tempo. Como desprender-se daquilo que tão intimamente
lhe roça à pele? Os fedores, os cheiros azedos que por vezes lhes servem como
comida? Do fundo das redes onde as próprias falas obtêm sentido? Contudo há
sempre algo a incitar os demônios que os seres segregam, por isso deve ir ao encontro
do mar. Cumprir destino de não ser daqui nem de lá, de lugar nenhum e de todos.
E ali onde está o mar, está também o urbano, um maracatu forjado num ambiente outro.
“Cobra Norato”, de Raul Bopp, a regurgitar outro mundo para o que lhe vai da
imagem de universos pouco visitados: "Rios magros obrigados a trabalhar
descascam barrancos gosmentos. Raízes desdentadas mastigam lodo." Assim o cão resolve traçar trajetória até a
cidade, o roteiro aprendido na mesma educação pela pedra por Severino. Não mais
mineral, mas metafórica, da dureza de encontrar terras outras.
A água e sua ondulação
salgada, sua corrente cardíaca, seu modo muito suspeito de se desnudar, penetrar,
erodir, sulcar, avançar, tomar etc. Todos os verbos marítimos envelhecem e
carcomem a cidade e seus moradores. Nada poderá deter a morte
que um dia deverá aportar à cidade. Nada poderá deter a doença, o detrito, a
salsugem segregada no bucho podre dos navios. É pelo porto que o cão se embarca na realidade da cidade. Andando ali, ele não se reconhece
na paisagem, não divisa nem uma particulazinha sua no forjado urbano.
Poderá um cão viver ali, cercado de incontornáveis riscos, violências, desigualdades?
O animal é aquele que no discurso nos olha direto na cara. Enquanto nos olha, se põe a falar. O animal é o olho que fala no discurso. E dessa retórica se vale o cão para ir do sertão à cidade e aos que atravessam os rastros do seu caminhar. Delicado pensar que animais construíram esse novo ambiente: barata, cigarra, cachorro poderiam criar condições para uma retórica da educação?
Por vezes, só o que perdemos é nosso. Ao deixar para trás o sertão o cão tem-no agora preso ao seu corpo. Seus foram os dias que se perderam na poeira amarelada dos caminhos que cruzou. O mover-se na dança da chuva que desejou, sem muitas vezes alcançar sequer nenhuma gota, que dali a chuva é levada pelos ventos que orientam o terror, não a esperança.
Por vezes só o que morreu é nosso. O fúnebre poema, a cantiga, a ladainha pagã que acompanha o morto, e que para ele é improvisada, mas para que ele se faça acompanhar dessa singular beleza, é preciso que esteja morto. O choro, a saliva, o carpir lhe fazem pertencer de novo ao chão – o que não lhe pertence mais é não fluir a música, esgarçada pelos últimos momentos.
Bibliografia
BOPP, Raul, “Cobra Norato”, José Olympio, 1994.
CARSON, Rachel, “Primavera Silenciosa”, Gaia Editora, 2010.
FOUCAULT, Michel, “As Palavras e as Coisas”, Martins Fontes, 2000.
NETO, João Cabral de, “Morte e Vida Severina”, Alfaguara, 2007.
NETO, João Cabral de, “O Cão Sem Plumas”, Alfaguara, 2007.
KAFKA, Franz, “A Metamorfose”, Vida Cultural, 2002. RAMOS, Graciliano, “Vidas Secas”, Record, 2006.
Juliete Oliveira (Arte e Pensamento: A Reinvenção do Nordeste. Organização André Queiroz. Editora SESC
Imagem: sítio de poesia