segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Defensores da Amazônia encaram o exílio ou a morte
por Tom Phillips, do The Guardian

Ativistas brasileiros que denunciavam madeireiros ilegais podem esperar visitas de pistoleiros.



Um único tiro na têmpora foi a recompensa de João da Gaita por dar com a língua nos dentes. Seu amigo, Junior José Guerra, só teve um pouquinho mais de sorte.
Qual foi o prêmio recebido por Guerra por denunciar os madeireiros ilegais que destroem a maior floresta tropical da Terra? Um lar quebrado, duas crianças petrificadas e o exílio incerto de uma vida que ele havia passado anos construindo na Amazônia brasileira.
“Eu não posso voltar”, diz Guerra, um dos mais novos refugiados ambientais da Amazônia, três meses depois que o brutal assassinato de seu amigo forçou ele, sua mulher e seus dois filhos a se esconderem. “Me contaram que eles estão tentando descobrir onde estou. A situação é muito complicada.”
João da Gaita, 55 anos, e Guerra, 38, moravam ao lado da BR-163, estrada remota e traiçoeira, que corta o Estado do Pará de norte a sul. Eles eram migrantes do sul do Brasil, que haviam vindo em busca de uma vida melhor.
Nenhum dos dois era ambientalista de carteirinha e ambos haviam supostamente se envolvido com crimes ambientais. Mesmo assim, eles optaram por cometer o que é considerado um pecado capital nesse rincão isolado do Brasil – eles denunciaram criminosos que estariam ganhando milhões com a ceifa ilegal de ipês das unidades de conservação num canto da Amazônia conhecido como Terra do Meio.
Numa região frequentemente comparada ao Velho Oeste, trair os responsáveis pela pilhagem da floresta frequentemente leva ao caixão ou ao exílio. João da Gaita, músico amador e mecânico cujo nome era João Chupel Primo, encontrou seu destino primeiro.
Em outubro passado, ele e Guerra entregaram às autoridades um dossiê que apontava as supostas atividades de madeireiros ilegais e grileiros da região. Em questão de dias, dois homens apareceram na oficina de Primo, na cidade de Itaiatuba, e o mataram a bala. Uma fotografia ensanguentada de seu cadáver, colocada na laje do agente funerário, foi publicada pelo tabloide local. “Há sinais de que isso foi execução”, disse ao jornal o chefe de polícia da cidade, José Dias.
Guerra escapou da morte, mas também ele perdeu a vida. Avisado do assassinato de seu amigo, ele se trancou em casa, agarrado a uma espingarda para resistir aos pistoleiros. No dia seguinte, ele foi escoltado para fora da cidade pela Polícia Federal. Desde então, Guerra embarcou numa peregrinação solitária pelo Brasil, viajando milhares de quilômetros em busca de apoio e segurança. Ele se tornara o mais recente exilado amazônico – gente que é forçada a esconderijos autoimpostos ou proteção policial por causa de suas atitudes contra aqueles que destroem o meio ambiente.
“Eles ordenam o assassinato de qualquer um que os denuncie” (às autoridades), disse Guerra esta semana por uma precária linha telefônica no seu mais recente esconderijo. “Nós pensávamos que (…), se denunciássemos os crimes, eles (o governo) fariam alguma coisa (…). Mas o resultado foi que João foi assassinado.”
Em junho, o Brasil hospedará a Conferência Rio +20 das Nações Unidas, sobre desenvolvimento sustentável. Líderes mundiais se reunirão no Rio para debater como conciliar o desenvolvimento econômico com a conservação ambiental e a inclusão social.
O Brasil poderá alardear avanços na batalha contra o desmatamento – em dezembro, o governo disse que a destruição da Amazônia havia caído ao seu nível mais baixo em 23 anos. Mas as contínuas ameaças aos ativistas ambientais representam uma enorme mancha em suas credenciais em questões de meio ambiente.
“O que está em jogo (…) é a capacidade do governo de proteger as florestas e seus povos”, diz Eliane Brum, jornalista brasileira vencedora de inúmeros prêmios por suas reportagens sobre a Amazônia. “Se nada for feito (…), o governo estará desmoralizado às vésperas da Rio+20.”
Guerra está longe de ter sido a primeira pessoa forçada ao exílio por se opor à destruição. De acordo com números do governo, 49 “defensores dos direitos humanos” estão atualmente sendo protegidas no Estado do Pará, enquanto outras 36 testemunhas também estão recebendo proteção.
No ano passado, depois dos assassinatos de grande visibilidade dos ativistas amazônicos José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, duas famílias locais pegaram um avião rumo a um esconderijo e assumiram novas identidades num rincão distante do Brasil. Como Primo e Guerra, elas sabiam demais.
No Estado vizinho do Amazonas, onde os ativistas dizem que quase 50 pessoas correm risco iminente de assassinato, a líder rural Nilcilene Miguel de Lima foi forçada a fugir de casa. “Os pistoleiros e os assassinos deveriam estar na prisão, mas sou eu que estou presa”, disse ela ao site O Eco depois que uma tentativa de assassinato a forçou ao exílio.
José Batista Gonçalves Afonso, veterano advogado de direitos humanos da Amazônia, disse que já viu “incontáveis” famílias forçadas ao exílio pelo medo de serem assassinadas. Ele atribui a culpa da situação à “ineficiência do Estado para investigar ameaças e fornecer segurança”.
Brum, que tornou públicas as provações de Guerra, disse que a situação dele reforça a ideia de que “não vale a pena denunciar o crime organizado, porque denunciar significa morrer”.
“É possível que, depois do que aconteceu (…), outras pessoas terão a coragem de se rebelar e denunciar o crime organizado na Amazônia?”, ela pergunta.
Ramais de Castro Silveira, o secretário executivo de Direitos Humanos do país, descreveu a situação de Guerra como “extremamente séria” e disse que suas preocupações eram “legítimas”. Mas Guerra não foi incluído num programa federal de proteção a defensores dos direitos humanos porque ele não se qualificava como ativista de direitos humanos, disse Silveira. Ele admitiu que não havia nenhuma proteção específica para ativistas ambientais, mas disse que Guerra tinha recusado lugar num esquema de proteção de testemunhas em outra parte do Brasil por causa de suas “restrições”.
“É direito meu morar lá”, disse Guerra. “Eu arrisquei a minha vida para denunciar esses crimes, e agora eu tenho que ir embora?”
Silveira disse que os responsáveis pelo assassinato de Primo e o exílio de Guerra seriam capturados “no curto a médio prazos”. “Não acredito que o drama pelo qual eles passaram e estão passando tenha sido em vão”, disse ele.
Por enquanto, a vida de fugitivo vai cobrando o seu preço de Guerra, sua mulher e seus filhos, que ele não conseguiu matricular na escola. “Temos que permanecer fortes e tentar lidar com isso”, ele disse. “É o único jeito”.

* Tradução de Idelber Avelar.
** Publicado originalmente no site Revista Fórum.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012


A indignidade que estão fazendo contra o jornalista Lúcio Flávio Pinto

Raul Bastos:

Peço que você não deixe de ler esta nota. É a história de uma injustiça. Uma indignidade. Lúcio Flavio Pinto é um jornalista de Belém do Pará que há quase vinte anos edita uma publicação chamada Jornal Pessoal. É um profissional excepcional e fonte obrigatória quando for ser escrita a verdadeira história da região dos anos 70 para cá. Trabalhou, entre outros lugares, na Realidade, no Correio da Manhã e, por longos anos, no O Estado de S.Paulo como principal repórter da região e coordenador geral da cobertura dos correspondentes da Amazônia. Nesse período teve vida acadêmica e deu cursos sobre a Amazônia em universidades dos Estados Unidos e da Europa. O Jornal Pessoal ele faz sozinho, da apuração à edição. Não tem publicidade. Evidentemente, o jornal luta para se manter. Mas esse é o menor problema da vida do Lúcio Flávio.
O grande problema é a pressão sistemática que ele sofre dos poderosos da região por publicar matérias que denunciam indignidades e incomodam justamente os poderosos da região. Tentam calá-lo de várias maneiras, da intimidação à agressão, e ele tem resistido bravamente.Tentam sufocá-lo e calá-lo com 33 processos. Um deles está para ser concluído e tudo indica que poderá ser desfavorável. Qual o "crime" do Lúcio Flávio Pinto?
O Lúcio publicou denúncias comprovadas de que estava ocorrendo uma enorme grilagem de terras na região. Com isso impediu que o empreiteiro CR Almeida fizesse na Amazônia a maior grilagem da história do Brasil. Em represália, foi processado por CR Almeida sob a alegação de ter sido chamado de pirata numa das matérias do Lúcio Flávio, o que julgou ofensivo. Foi indo, foi indo e, agora, anos depois e por incrível que pareça, o caso está terminando assim: Com o CR Almeida não aconteceu nada. Com o Lúcio, se avizinha uma condenação. Com essa condenação, a perda da primariedade, uma porta aberta para a intimidação absoluta. Os amigos do Lúcio Flávio,entre os quais com muito orgulho me incluo, decidiram que ele não pode e nem vai ficar sozinho. Vamos batalhar para tentar esgotar todas as possibilidades jurídicas do caso.
Vamos batalhar para que o caso ganhe espaço na imprensa e nas redes sociais. Vamos chamar a atenção da imprensa especializada e internacional para o caso. Vamos batalhar, se por acaso ocorrer o pior, para que ele tenha recursos para enfrentar a situação. O objetivo deste email é dar conhecimento do que está acontecendo e da nossa disposição de não deixar continuar acontecendo. O objetivo deste email é pedir a sua ajuda. Primeiro, divulgando o que está acontecendo no seu veículo de comunicação, na sua coluna, nos sites, redes sociais. Depois, nos ajudando nas ações nas áreas da comunicações e mobilização que tomaremos diante de cada circunstância. Para quem quiser mais informações do que aconteceu e do que está acontecendo ler o texto abaixo do próprio Lúcio.

O Grileiro vencerá?

Em 1999 escrevi uma matéria no meu Jornal Pessoal denunciando a grilagem de terras praticada pelo empresário Cecílio do Rego Almeida, dono da Construtora C. R. Almeida, uma das maiores empreiteiras do país, com sede em Curitiba, no Paraná. Sem qualquer inibição, ele recorreu a vários ardis para se apropriar de quase cinco milhões de hectares de terras no rico vale do rio Xingu, no Pará, onde ainda subsiste a maior floresta nativa do Estado, na margem direita do rio Amazonas, além de minérios e outros recursos naturais. Onde também está sendo construída a hidrelétrica de Belo Monte, para ser a maior do país e a terceira do mundo. Os 5 milhões de hectares já constituem território bastante para abrigar um país, mas a ambição podia levar o empresário a se apossar de área ainda maior, de 7 milhões de hectares, o equivalente a 8% de todo o Pará, o segundo maior Estado da federação brasileira. Se fosse um Estado, a "Ceciliolândia" seria o 21º maior do Brasil.
Em 1996, na condição de cidadão, ajudei a preparar uma ação de anulação e cancelamento dos registros das terras usurpadas por C. R. Almeida, com a cumplicidade da titular do cartório de registro de imóveis de Altamira e a ajuda de advogados inescrupulosos. A ação foi recebida e todos advertidos de que aquelas terras não podiam ser comercializadas, por estarem sub-judice, passíveis de nulidade. Os herdeiros do grileiro podem continuar na posse e no usufruto da pilhagem, apesar dessa decisão, porque a grilagem recebeu decisão favorável de dois desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado. Deve-se salientar que essas foram as únicas decisões favoráveis ao grileiro. Com o acúmulo de informações sobre o estelionato fundiário, os órgãos públicos ligados à questão foram se manifestando e tomando iniciativas contra o golpe. O próprio poder judiciário estadual interveio no cartório de Altamira e demitiu todos os serventuários que ali trabalhavam, inclusive a escrivã titular, por justa causa. Todos os que o empresário processou na comarca de São Paulo foram absolvidos. O juiz observou que essas pessoas, ao invés de serem punidas, mereciam era homenagens por estarem defendendo o patrimônio público. A justiça de São Paulo foi muito mais atenta à defesa da verdade e da integridade de um bem público ameaçada por um autêntico "pirata fundiário", do que a justiça do Pará, com jurisdição sobre o território esbulhado. C. R. Almeida considerou ofensiva à sua dignidade moral a expressão, "pirata fundiário", e as duas instâncias da justiça paraense sacramentaram a sua vontade. Mesmo tendo provado tudo que afirmei fui condenado. A cabulosa sentença de 1º grau foi confirmada pelo tribunal, embora a ação tenha sido abandonada desde que Cecílio do Rego Almeida morreu, em 2008. Depois de enfrentar todas as dificuldades possíveis, meus recursos finalmente subiram a Brasília em dezembro do ano passado. O recurso especial seguiu para o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Ari Pargendler, graças ao agravo de instrumento que impetrei (o Tribunal do Pará rejeitou o primeiro agravo; sobre o segundo já nada mais podia fazer). Mas o presidente do STJ, em despacho do último dia 7, negou seguimento ao recurso especial. Alegou erros formais na formação do agravo: "falta cópia do inteiro teor do acórdão recorrido, do inteiro teor do acórdão proferido nos embargos de declaração e do comprovante do pagamento das custas do recurso especial e do porte de retorno e remessa dos autos".
A falta de todos os documentos apontada pelo presidente do STJ me causou enorme surpresa. Vou tentar esclarecer a situação, sabendo das minhas limitações. Não tenho dinheiro para sustentar uma representação desse porte. Muito menos para arcar com a indenização. Desde 1992 já fui processado 33 vezes. Nenhum dos autores exerceu o legítimo direito de defesa. O Jornal Pessoal reproduz todas as cartas que recebe, mesmo as ofensivas, na íntegra. Todos foram diretamente à justiça, certos de contarem com a cumplicidade daquele tipo de toga que a valente ministra Eliana Calmon, Corregedora Nacional de Justiça, disse esconder bandidos, para me atar a essa rocha de suplícios, que, às vezes, me faz sentir no papel de um Prometeu amazônico. Apesar de todas essas ações e do martírio que elas criaram na minha vida nestes últimos 20 anos, mantenho meu compromisso com a verdade, com o interesse público e com uma melhor sorte para a Amazônia, onde nasci. Não gostaria que meus filhos e netos (e todos os filhos e netos do Brasil) se deparassem com espetáculos tão degradantes, como o que vi: milhares de toras de madeira de lei, incluindo o mogno, ameaçado de ser extinto nas florestas nativas amazônicas, nas quais era abundante, sendo arrastadas em jangadas pelos rios por piratas fundiários, como o extinto Cecílio do Rego Almeida. Depois de ter sofrido todo tipo de violência, inclusive a agressão física, sei o que me espera. Mas não desistirei de fazer aquilo que me compete: jornalismo. Algo que os poderes, sobretudo o judiciário do Pará, querem ver extinto, se não puder ser domesticado conforme os interesses dos donos da voz pública. Decidi escrever esta nota não para pressionar alguém. Não quero extrapolar dos meus direitos. Decisão judicial cumpre-se ou dela se recorre. Se tantos erros formais foram realmente cometidos no preparo do agravo, o que me surpreendeu e causou perplexidade, paciência: vou pagar por um erro que impedirá o julgador de apreciar todo meu extenso e profundo direito, demonstrado à exaustão nas centenas de páginas dos autos do processo. Terei que ir atrás da solidariedade dos meus leitores e dos que me apoiam para enfrentar mais um momento difícil na minha carreira de jornalista, com quase meio século de duração. Espero contar com a atenção das pessoas que ainda não desistiram de se empenhar por um país decente.

Belém (PA), 11 de fevereiro de 2012
LÚCIO FLÁVIO PINTO
Editor do Jornal Pessoal

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012


Belo Monte: “O capital fala alto, é o maior Deus do mundo”


“Todas as informações estão sendo dominadas por essa democracia ditatorial, que nunca pensei que pudesse existir. Ela é ainda pior que a militar, porque é enganosa, porque diz ser uma coisa e é outra”, afirma a religiosa.

Há 35 anos, Irmã Ignez Wenzel deixou as atividades que desenvolvia no Colégio São João, em Porto Alegre, onde trabalhava junto aos Lassalistas, para abraçar a causa dos colonos que migraram para o Pará em função da construção da Rodovia Transamazônica (BR-230). Em Medicilândia (PA) e Altamira (PA), iniciou os trabalhos pastorais, visitando mais de 80 comunidades, onde pôde observar de perto o abandono do Estado e os problemas sociais que se arrastam há anos na região.
Atualmente, ela vive em Altamira (PA), e está engajada com o Movimento Xingu Vivo para Sempre na luta contra a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Em visita ao Rio Grande do Sul, Irmã Ignez recebeu a IHU On-Line no Convento Monte Alverne, onde concedeu a entrevista a seguir. Por trás da voz tranquila, encontramos uma mulher incansável, que conhece as mazelas do interior paraense e está disposta a continuar lutando em defesa da vida, a exemplo de São Francisco de Assis. Depois de conviver mais de três décadas do outro lado do país, ela é enfática: “O que mais me indigna é a incompetência, a incapacidade do povo do Sul e do Centro de julgar a situação do povo do Norte”, referindo-se à intolerância e ao descaso do governo federal com as populações que dependem do Rio Xingu para sobreviver. Na entrevista a seguir, ela explica quais são as contradições da usina hidrelétrica de Belo Monte e critica o posicionamento de alguns cristãos, que não se manifestam em relação aos problemas sociais e ambientais da região. “A voz maior é a do bispo, Dom Erwin Kräutler, e muitos já se sentem contemplados com a fala dele. É uma lástima. Nem todas as religiosas estão engajadas com estas questões”, lamenta.
Irmã Ignez também denuncia as artimanhas do governo e da Norte Energia, empresa responsável pela construção, operação e manutenção da hidrelétrica de Belo Monte, para cooptar indígenas e ribeirinhos que estavam engajados com as manifestações contra a hidrelétrica, e a postura da Advocacia Geral da União (AGU), que solicitou o afastamento do procurador da República Felício Pontes Jr. dos processos que envolvem a construção de usinas hidrelétricas. “Ele era nosso grande líder, estava ao nosso lado, era coerente, de pé no chão. O governo está nos tirando o último fio que nos esquentava na solidão, a nossa força legal, Felício Pontes”, afirma.
Ignez Wenzel é graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e em Teologia pela Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). É religiosa da Congregação das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã.
Confira a entrevista.


IHU On-Line – Desde quando a senhora vive em Altamira, no Pará? Pode nos contar um pouco da sua trajetória?
Ignez Wenzel – Estou em Altamira há 35 anos. Fui morar no Pará porque Dom Eurico Kräutler, tio de Dom Erwin, veio a Porto Alegre pedir socorro para a Igreja da cidade. Ele queria que enviassem irmãs, irmãos e padres para Altamira porque, em função da construção da Rodovia Transamazônica, milhares de famílias de colonos migraram para a região e não havia padres que pudessem assistir essas pessoas e tampouco escolas para as crianças. Três congregações foram enviadas para lá: os Lassalistas, as Irmãs Escolares de Nossa Senhora, nós, Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã, e três padres diocesanos. As Irmãs Escolares de Nossa Senhora abriram escolas em Brasil Novo (PA), nós nos instalamos em Medicilândia (PA), os Lassalistas, em Uruará (PA), e os padres diocesanos atuaram nas três regiões, atendendo o povo e organizando as comunidades. O projeto de colonização visava a dividir os imigrantes de acordo com a sua origem, para que o povo brigasse entre si e não com o governo. A ideia era dividir para dominar. Então, a Igreja católica foi o centro das atenções no sentido de dar apoio a esse povo inseguro e abandonado, por meio das Comunidades Eclesiais de Base. Em 1987, surgiram os primeiros municípios na região e as comunidades passaram a ter autonomia e a se organizar como estrutura política e social de defesa da própria comunidade. Eu morei durante treze anos em Medicilândia, onde trabalhava diretamente com o povo e visitava cerca de 80 comunidades, onde formávamos lideranças. Quando mudei para Altamira, ajudei a articular os movimentos sociais com as pastorais.


Luta


Hoje moro em Altamira, e participo da luta contra a construção de Belo Monte, um projeto que se estende desde a década de 1980. Em 1989, nós participamos de uma grande mobilização contra a construção da hidrelétrica: mais de 800 indígenas do Brasil e de outros países participaram. Na ocasião, o governo federal pleiteou um empréstimo no Banco Mundial para construir a hidrelétrica, mas os organismos sociais conseguiram barrar este empréstimo e a discussão acerca da construção da hidrelétrica ficou adormecida. Depois dos anos 2000, o debate reacendeu e começamos a discutir a questão novamente. Em 2007, realizamos um encontro com todos os caciques indígenas e foi nesta ocasião que adotamos o nome Xingu Vivo para Sempre, após um dos caciques gritar: “Nós queremos o Xingu vivo para sempre”. Percebemos aí uma filosofia de vida e desde então nos tornamos o Movimento Xingu Vivo para Sempre. Nesta ocasião, os indígenas pediram para organizarmos uma grande mobilização envolvendo a sociedade civil a fim de discutir as implicações da construção de Belo Monte. Reunimos cerca de cinco mil pessoas. Os indígenas coordenaram parte do evento onde todo mundo teve direito de fala, inclusive o governo e os representantes da Eletrobrás. Durante a explanação do representante da Eletrobrás, os indígenas começaram a dançar, demonstrando que não estavam satisfeitos com os argumentos dele. Ao manifestar que também não concordava com os indígenas, o representante da Eletrobrás caiu no meio deles e sofreu um pequeno corte no braço. Algumas pessoas ainda respondem processo com a alegação de terem armado os indígenas. Mas não foi isso que aconteceu. Essas pessoas apenas possibilitaram os ornamentos necessários para uma manifestação digna da cultura deles. Em função desse incidente, nós entramos em crise e acabamos cancelando uma passeata que ia ocorrer na cidade. Porém, não cancelamos o evento.


IHU On-Line – Como a população que reside em Altamira reage diante da construção de Belo Monte? Os moradores participam das manifestações e demonstram um posicionamento em relação ao projeto da hidrelétrica?
Ignez Wenzel – O governo sempre consegue intimidar a população com ameaças. Muitas pessoas são contra a construção da hidrelétrica, mas dizem que não podem fazer nada em relação à decisão de construí-la. A maioria do povo é contra a barragem, mas não tem condições psicológicas de reagir. A Norte Energia e o governo têm estratégias: eles estudam as lideranças para depois cooptá-las. Agiram assim com os ribeirinhos e fizeram o mesmo com os indígenas. Recentemente, nós (civis, movimentos do Brasil inteiro e indígenas) estávamos acampados em cima de um canteiro de obras de Belo Monte, quando, de repente, as lideranças indígenas desapareceram e, ao voltarem, o cacique ordenou que recolhessem suas coisas e fossem embora. Ninguém entendeu esta atitude. Quando eles chegaram no município de Conceição do Araguaia (PA), o cacique fez várias compras. O que aconteceu? A Norte Energia os chamou, deu dinheiro e nos deixou com as “calças na mão”. Na semana passada, fizemos um protesto por causa do início das obras da hidrelétrica, barrando uma região do Xingu. Levamos duas faixas: uma de 40 e outra de 15 metros de comprimento, onde dizíamos que não queremos Belo Monte. Barramos por uma hora e não deixamos os caminhões passarem porque Belo Monte é contra a lei, contra a Constituição.


IHU On-Line – Como a senhora se sente quando vê os casos de cooptação dos indígenas e ribeirinhos que estavam engajados nesta luta?
Ignez Wenzel – Eles serão prejudicados, ficarão sem as terras, sem a sua cultura, e serão os futuros “beirantes de estradas”. Sentimos uma indignação que quase não conseguimos expressar. Os ribeirinhos são ainda mais frágeis do que os indígenas, porque eles moram sozinhos e não têm um clã. Um ribeirinho ganhou R$ 900 mil pelo seu lote e arrastou mais 12 pessoas com ele. Eles vão viver em uma terra seca. O rio vai secar mais ou menos 140 quilômetros. Apesar de tudo isso, continuamos a nossa luta e temos vários centros de Xingu Vivo espalhados pelo Brasil, nas cidades de Belém, São Paulo, Santa Catarina, São Leopoldo. A índia Sheila Juruna e Antônia Melo já foram para os Estados Unidos e para a Europa, conseguimos entrar com uma ação na Corte Interamericana, mas o governo brasileiro disse que isso era uma banalidade e que nada do que estamos falando era verdade. Notamos que os governos Lula e Dilma têm a seguinte filosofia: “Acolham todo mundo, mas toquem para frente, não parem”. Pessoalmente, estou muito aflita porque o Xingu fica no meio da Amazônia, onde está prevista a construção de mais de 300 barragens até 2050. O que vai sobrar do ecossistema? Os colonos não podem derrubar uma árvore, e os envolvidos com Belo Monte desmataram uma área enorme. Essa madeira está parada e será utilizada para outros fins.


Dilemas sociais

O sistema econômico nos explora. Desde a construção da Rodovia Transamazônica, milhares de pessoas migraram para Altamira e a cidade continua com os mesmos hospitais, a mesma infraestrutura. As pessoas que trabalham em torno de Belo Monte sempre têm prioridade nos atendimentos hospitalares. A população já fez manifestos contra isto, mas nada acontece porque a prefeitura é dirigida pela Norte Energia. As escolas, as estradas e os postos de saúde prometidos ainda não foram construídos. O fedor das ruas continua o mesmo de 20 anos atrás. Em um determinado momento da construção de Belo Monte, Altamira vai receber 18 mil trabalhadores e em torno de cem mil habitantes. Hoje os universitários que chegam do interior dormem em cima de colchonetes, têm de procurar comida e geralmente não encontram nada para comprar. O preço dos aluguéis aumentou mais de 300%, enquanto que os chefes de Belo Monte moram em apartamentos que têm custo alto e são pagos pela Norte Energia.


IHU On-Line – A Igreja continua engajada na busca de solução para esses problemas, como estava há 35 anos? Como os membros da Igreja se posicionam diante de Belo Monte e desses dilemas sociais?
Ignez Wenzel – Alguns estão atuando junto com o movimento Xingu Vivo para Sempre, mas dentro da Igreja também tem pessoas que sentem medo. A voz maior é a do bispo e muitos já se sentem contemplados com a fala dele. É uma lástima. Nem todos estão engajados com estas questões.


IHU On-Line – Dom Erwin está à frente como bispo, mas terá de deixar o cargo ao completar 75 anos. Quem poderá assumir o cargo dele? Como ficará a luta contra a construção da usina, considerando que ele é visto como referência hoje?
Ignez Wenzel – Ainda não tivemos tempo de pensar na saída de Dom Erwin, mas talvez ele seja substituído por um bispo de fora. Devido às circunstâncias, certametamente haverá mudanças. A nossa prelazia começa no Mato Grosso e termina em Macapá, no Estado do Amapá, no outro lado do Rio Amazonas. É uma extensão muito grande e não há como atender a todos. Este ano, Dom Erwin completará 73 anos, e aos 75 tem de avisar ao Papa que está na hora de deixar o cargo, mas nem sempre o Papa atende logo. Portanto, poderá ficar mais alguns anos ou poderá sair em seguida. Mesmo deixando o cargo, não deixará de lutar; talvez disponha de mais tempo. De toda maneira, não deixará de ser uma liderança nossa. Liderança não se prende.


IHU On-Line – Ele continuará sendo influente nesta luta?
Ignez Wenzel – Sim, porque será sempre o bispo do Xingu. Quando se aposentar, ele será “emérito”, e aí vão dizer que ele tem muito mérito. (Risos)


IHU On-Line – A senhora percebeu alguma mudança no debate sobre Belo Monte após a saída de Ana Júlia Carepa (PT) e a entrada de Simão Jatene (PSDB) no governo estadual?
Ignez Wenzel – Não gosto do partido atual porque ele não tem uma postura solidária, mas, por outro lado, foi ele quem deu o grito de que o governo federal do PT desrespeita a lei do Estado.
Em função do PT, o movimento Xingu Vivo para Sempre ficou dividido. Nós trabalhávamos dentro da Fundação Viver, Produzir, Preservar e fomos expulsos. Pedimos ajuda ao bispo, para termos um espaço para reunir as pessoas e não sermos manipulados. Dói muito ver que os mesmos companheiros e colegas que lutaram para conseguir melhorias sociais não estão mais do nosso lado. Em relação à Ana Júlia, posso dizer que não fez quase nada.


IHU On-Line – Como a mídia paraense atua em relação a Belo Monte?
Ignez Wenzel – A mídia paraense aparece quando os veículos de outros estados pedem informação. A TV Cidade Livre, da Prelazia, tem um jornal diário de 30 minutos e é favorável à luta contra Belo Monte. Somente as rádios comunitárias divulgam informações, as demais estão fechadas para esta questão. Todas as informações estão sendo dominadas por essa democracia ditatorial, que nunca pensei que pudesse existir. Ela é ainda pior que a militar, porque é enganosa, porque diz ser uma coisa e é outra.


IHU On-Line – O que mais lhe causa indignação?
Ignez Wenzel – O que mais me indigna é a incompetência, a incapacidade do povo do Sul e do Centro para julgar a situação do povo do Norte. A presidente Dilma declarou o seguinte, recentemente: “Nós vamos tirar esse povo que vive em palafita da miséria”. Há dois erros nessa afirmação: o povo não vive na miséria; vive na pobreza, pois eles estão cuidando da alimentação; e palafita é um tipo de construção necessária na Amazônia, onde, em determinados meses, as casas próximas ao rio ficam debaixo d’água caso não sejam construídas no alto. A fala dela demonstra a falta de compreensão do que é a Amazônia. O governo também não entende o que é a floresta e a biodiversidade. Há comentários de que o interesse do governo não é a construção da hidrelétrica e, sim, o minério que tem na região. No período de estiagem, provavelmente, a hidrelétrica não vai gerar energia. Para que gastar R$ 31 bilhões com uma coisa que não funciona? Quando a Irmã Dorothy esteve no Canadá, disse que em uma reunião foi dito que Belo Monte é necessário para viabilizar os trabalhos na mineração, ou seja, ao secar o rio, a água deixará de ser um incômodo.


IHU On-Line – Qual a situação das comunidades que vivem em Tucuruí? A vida delas mudou após a construção da hidrelétrica?
Ignez Wenzel – A hidrelétrica de Tucuruí foi construída há 25 anos e os pobres vivem debaixo da linha de alta tensão, sem acesso à energia. Tucuruí é pobre, miserável. Muitos moradores foram expulsos de lá e mudaram para Altamira, de onde serão expulsos novamente. Em função de Belo Monte, Altamira vai enfrentar um problema gravíssimo de consumo de drogas e exploração sexual de meninas e adolescentes. Altamira não foi preparada para as transformações geradas pela Rodovia Transamazônica. Vi colonos passarem fome colhendo quinhentos sacos de arroz, porque não tinham como trazer o alimento para a cidade. O jeito de eles sobreviverem é encostar-se na cidade para, pelo menos, deixar os meninos estudarem e dar um jeito vendendo picolé, engraxando sapatos. A cidade inchou, já tem mais de cem mil pessoas, e apenas 6% das casas têm água encanada.


IHU On-Line – Além do medo de as pessoas manifestarem opinião, a que atribui o aumento desses problemas sociais e a falta de mobilização?
Ignez Wenzel – Na época da ditadura, todo mundo calava com medo de ser preso. Os poucos que falaram foram mortos. De modo geral, a população não tem estudo. As nossas escolas são tão fracas, que passam todos os alunos para frente. Parece que o governo não quer povo culto; quer gente de cabresto. Por isso, nós fomos contra a divisão do Pará, pois caso o Estado fosse dividido, teríamos mais ladrões. Com essa discussão, poderíamos ter feito uma boa reflexão, mas nenhum partido político fez isso.


IHU On-Line – A Igreja estava dividida em relação à divisão do Pará?
Ignez Wenzel – Nós não falamos muito sobre isso porque estamos mais preocupados com a situação do Xingu. De todo modo, éramos contra a divisão. Organizamos um debate e um seminário na universidade, mas poucas pessoas participaram. O povo não estava muito interessado.


IHU On-Line – Qual é o desafio dos movimentos sociais? Como interpreta o Fórum Social Mundial e o engajamento de alguns partidos nesse projeto?
Ignez Wenzel – Os movimentos e os partidos fizeram uma associação, “contanto que a fatia maior seja para mim”, conforme dizem. Nós participamos do Fórum Social Mundial, realizado em Belém, levamos sete ônibus lotados, e na ocasião disseram que nunca um Fórum Social teve tantos pobres como aquele. Naquele tempo, nós tínhamos esperança, mas depois foram cortando todos os naipes.


IHU On-Line – Vocês estão preparando alguma atividade para lembrar a memória da Irmã Dorothy, sete anos depois do seu assassinato? Como está a questão dos conflitos na região?
Ignez Wenzel – A região está pior do que antes, porque os fazendeiros voltaram e, como o prefeito de lá é do PT, ele é safado como os outros. Então, não se pode esperar nada. Dia 12 de fevereiro será realizado um grande encontro e uma celebração. À tarde irão até a sepultura dela, que fica no meio da mata, onde ela pediu para ser enterrada. Hoje, muitos militantes que participavam do movimento da Irmã Dorothy estão do outro lado. O capital fala alto, é o maior Deus do mundo.


IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Ignez Wenzel – Eu quero dizer que ainda tem treze ações no Supremo Tribunal Federal, as quais devem ser julgadas, mas eles não têm coragem de julgá-las. Não sei como está a situação do procurador Felício Pontes, que foi impedido de desempenhar suas funções em defesa de populações atingidas por projetos hidrelétricos no Pará. Ele era nosso grande líder, estava ao nosso lado, era coerente, de pé no chão. O governo está nos tirando o último fio que nos esquentava na solidão, a nossa força legal, Felício Pontes. Mas nossa esperança de vida do Xingu vivo continua.

Por Patricia Fachin, Thamiris Magalhães e Luana Nyland, do Adital
Publicado originalmente no site IHU- Online e retirado do Adital e Revista Envolverde.