[Minha família não era rica], era uma família tradicional. Não tive infância luxuosa. Aqueles luxos que certos escritores atribuem ao engenho devem ter sido no princípio da Colônia. Nenhum dos engenhos de meu pai tinha luz elétrica, de modo que, quando começava a escurecer, as empregadas punham todos os candeeiros sobre a mesa, iam acendendo um por um e levando para diferentes cantos para pendurar. Eu fiquei no engenho do Poço do Aleixo antes de me alfabetizar. Então meu pai foi morar no Recife, e nós tínhamos uma professora, a dona Natália, para mim e meu irmão. Depois que nós estávamos suficientemente alfabetizados, entramos para o Colégio Marista. A gente passou a ir ao engenho apenas nas férias. Nessa época, os empregados compravam os folhetos e levavam para eu ler. Eu ficava sentado num carro de boi velho e todos ficavam em volta, sentados no chão, ouvindo.
João Cabral de Melo Neto
João Cabral sai de uma esfera familiar tradiconal de Pernambuco, uma esfera pacata, empobrecida, sem ligações com as classes dominantes do estado e do Nordeste. Menino de engenho como quase todos os demais, daí atravessa para o mundo da escrita e da leitura. Penso mesmo que João Cabral teve entre os poetas modernos um dos mais intensos relacionamentos com a leitura, a grande leitura - tentar achar os grandes autores, ao passo que escrevia a grande poesia de que foi capaz. Autor não por acaso de um dos mais fascinantes poemas escrito em nossa língua, "O cão sem plumas". A que todos devíamos amar e conhecer. Políticos, professores, alunos, educadores ambiental, engenheiros de todas as marcas e utilidades, garis, lavadeiras, jornalistas, médicos, jogadores de futebol, amantes, aventureiros, namorados, porteiros, policiais, motoristas, empregadas doméstica. Um teste de selação a qualquer coisa, emprego, por exemplo, era saber de cor um trecho do poema. Ter a rua João Cabral de Melo Neto bem na beira do imponente rio da cidade. E no sertão, a rua da praça principal, onde se escutaria nas missas o poema reunir o povo. "O cão sem plumas" é o Nordeste com uma das menores expectativas de vida do mundo, 27 anos. Menos ainda que a Índia, Bangladesh, Haiti. É esse o dado inaugural do poema escrito em Barcelona em 1950. O estômago sem vida do Nordeste. É a esse Nordeste que João Cabral retorna quase que num tratado social. Um Nordeste que o impressiona porque está dentro dele desde sempre, nunca apartado pelos outros temas - para que não perdesse tudo ao desprender-se do que já possuía. Grande lição de coisa aos nordestinos. Lufadas de vento morno, ardente. Tantas são as coisas definitivamente nossas das que não se pode abrir mão, presas e atadas ao corpo, tatuadas na memória. A cidade, o caminho, o rio...
Aquele rio
está na memória
como um cão vivoestá na memória
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.
Ney Ferraz Paiva & Juliete Oliveira
imagem: Maryana Carvalho, Rio São Francisco, Cabrobó-PE