sábado, 18 de setembro de 2010

A vida nos livros

(de uma conversa com Kafka, Borges, Deleuze, Guattari)

                                                                                                                  
  Ao Lúcio Flávio Pinto


Os caminhos que encontro na página busco preenchê-los polifonicamente com Borges, que em nossa última conversa confessou: “certa vez planejei um exame dos precursores de Kafka. A princípio, considerei tão singular quanto à fênix dos elogios retóricos; depois de alguma intimidade, pensei reconhecer sua voz, ou seus hábitos, em textos de diversas literaturas e de diversas épocas”.

Assim penso reconhecer as diversas vozes dos meus pares, assombra-me, no entanto, que estas não cheguem aos livros. Em uma intensidade movediça a Odisséia registra que “os deuses tecem desgraças para que às futuras gerações não falte o que cantar”. Mallarmé trinta séculos depois concebe algo parecido para justificar a estatística dos males: o mundo existe para chegar aos livros.

Tudo isso tem a ver com o diálogo que se persegue aqui, para aquarelar uma sociedade que aviltou todas as propriedades e todos os valores: seus nomes, suas casas, suas famílias, origens natalinas e finalmente as suas crenças, algo como uma bastardia voluntária, não só desprezível, mas, muito além de qualquer justificativa e sempre, absolutamente sem chance de redenção. Nenhuma poesia a poderá isentar.

O que providenciamos agora em matéria de sociedade é paradoxalmente contrário à vida, um jogo infame das identidades e das semelhanças, disfarçado em discurso protecionista. Há muito rompemos qualquer parentesco com as coisas.

A despeito de uma existência pautada no global temos uma visão reduzida das coisas, inclusive da nossa bio-região, que seria nossa bandeira de lugar, nosso chão, em termos dos elementos naturais que em última instância nos sustenta, seja lá onde quer que estejamos. Nessa mesma conversa com Borges, após um charuto, ele revelou “que desde 1925, não há publicista que não opine que o fato inevitável e trivial de ter nascido num determinado país e de pertencer a uma determinada raça (ou uma boa mistura de raças) não seja um privilégio e um singular talismã.” Salutar meu caro Borges! Toda esfigênica questão ambiental padece desse sentimento de pertencimento territorial, regionalista em uma fórmula que, no entanto, sutilmente a deprecia e desvirtua.

O mais poderoso slogan das campanhas de apelo à proteção/conservação ambiental prefigura, inclusive, na Lei regimental e em espetacular antagonismo tem a ver com o início dessa conversa: “preservar para as futuras gerações”, em uma perversa previsão. A questão está esgotada de discursos. Prevalece nesta a costura interna, sombria. O que está na sombra é difícil de matar! Quem escreve porque pode escrever – não tem o Poder como seu adversário, nada sabe disso. Toma de assombro, assalta a opinião pública e apresenta página após página um texto pronto em que consta apenas uma versão dos fatos e claro buscando sempre a garantia da lei. É Lei, e pronto!

Borges, pergunto agora usando Deleuze, será que as pessoas criam, tiram de si suas idéias? Quando tentam a revolução, são loucos que querem acabar com a velha maneira de ver o mundo, uma subjetividade que pairava por sobre as suas cabeças e que os produzia, e que os tornava tão submissos a ideais que desde muito causam morte e mais morte… Acreditava-se em um socialismo sim, alguns mesmo se intitulavam de “Anarcos-desejantes”; os rótulos, sempre um aqui, ali. E Guattari completava: “Não conseguimos a revolução, mas ela está em curso, de outra maneira”.

O que será então que nos acontece? Que faz com que até mesmo os expoentes da política no Brasil sejam Senhores e Senhoras que não têm nenhuma compreensão do papel das pequenas máquinas de guerra? Desejo, Beleza, Alegria, Companheirismo? Que não têm a menor idéia de que esse conjunto é uma grande máquina de produção de subjetividades, que trabalha com conceitos muito diversos dos que estão habituados: o espírito de coletividade, a organização horizontal, a autogestão, conceitos de extrema potência para uma transformação social. Diferente de ter hectares e hectares com um único solitário proprietário de algo que poderá ser um deserto, logo mais, próximo a outros desertos. Podemos dizer que as pequenas máquinas fazem uma guerrilha subjetiva, combatendo a subjetividade do deserto particular que paira sobre os nossos pés. Nesse momento eu consigo entender o que é subjetividade, me parece que é toda uma forma de pensar e viver que aprendemos desde os nossos primeiros passos no mundo. E sobre as máquinas… tudo é máquina, Borges!
Ao que Borges retruca: “já somos o esquecimento que seremos.
A poeira elementar que nos ignora”. Até mesmo quem acha que é maior que todos, ou que tem importância, ou que chegou primeiro. E que por isso se encastelou no seu lucro e na sua loucura de Poder. Poeira. Deserto. Ainda este passará.

Salgueiro/PE, 18 de setembro de 2010

Juliete Oliveira
Imagem: Louise Bourgeois

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Abissal
O Estado do Pará reúne em seu território grandezas excludentes. Uma das maiores riquezas do mundo em minério e, por fazer parte da Amazônia, ainda a espantosa diversidade biológica, e possivelmente a mais bela capital da região e um acervo histórico áureo. Na outra vertente, entre calmaria e indiferença, maior índice de concentração de renda, analfabetismo crescente, pobreza vertiginosa e criminalidade, vergonhosos números de prostituição infantil, tudo perfazendo uma projeção de futuro digna dos cenários mais sórdidos da terra.

O discípulo de Parmênides, Zenão, demonstra – em um de seus diálogos – que se um “múltiplo” existisse, ele teria de ser constituído de infinitas pequenezas, o que, por consequência, resultaria em um extremamente grande, pois consistiria em infinitas pequenezas. Assim também se convertem os números do Pará. O total de meninas/meninos entregues ao universo numérico da estatística da prostituição e marginalidade é composto por infinitas pequenezas cotidianas, adquiridas via a sucessão histórica de abandono e descaso de um estado omisso e que promove a morte em lugar da vida. Sartre em sua incomensurável clareza de visão argumentou algo que se tornou, já até, meio vulgar: “a pior coisa do mundo é nos acostumarmos a ele”.

É esse o grande feito dos meios de comunicação de “massa” para o povo brasileiro, fazer com que nos acostumemos com o mundo. Pode-lhes soar lugar comum argumentar isso, agora. Contudo, somos incitados pela recente transmissão do pretensioso “Jornal Nacional”, transmitido direto da Cidade de Jacundá, no Estado do Pará. O que lhes pareceu aquilo? Será que essa iniciativa vai render mais um prêmio jornalístico à mega emissora de televisão? Quem de nós se perguntou quais são os reais objetivos da rede com a sua marcopoliana viagem pelo país que eles laconicamente dizem não conhecer?

Alguns de nós, até se perguntaram, sei. Mas, quantos de nós em nossa pequenez fomos capazes de usar os números apresentados ali, para algo que não seja escrever um texto para um blog?

O múltiplo pensado por Parmênides até existe, contudo é uma diversidade dantesca, feia, aterrorizante que empurra a juventude, sobretudo a do sul do Pará, para o desperdício de sua potência e energia. A vida como condutora dos prazeres, micropolíticas, cartografias desejantes, em que a ordem e o mesmo do gênero e da identidade, pensados por Felix Guattari, é um processo suspenso, delegado ao improvável. Cada vez mais e ad infinitun inalcançável pelos “cidadãos” de Jacundá. As meninas que hoje emprestam sua tenra carne ao saciamento do prazer do outro, por alguns trocados, ou prato de comida, serão, logo mais, mães a não ter o que deixar a seus filhos a não ser a trágica experiência e as falhas de um Édipo familiar que teima em passar bem.
E em face do que não podemos “sozinhos” solucionar, caímos no conformismo e lançamos tudo na conta do destino. A Rede Globo agindo como consciência e última fronteira das nossas tristezas. Até quando a audiência se multiplicará em um fracasso mais profundo? E do fracasso aparente fazer dar um passo à frente?

Juliete Oliveira