"E não sou mulher?" ("Ain't I A Woman?")
Discurso feito de improviso pela ex-escrava Sojourner Truth. Pouco depois de conquistar a liberdade em 1827, tornou-se uma conhecida oradora abolicionista. O discurso foi proferido na Women's Convention em Akron, Ohio, em 1851.
Trecho:
“Bem, crianças, onde há muita confusão deve haver algo de errado. Penso que entre os negros do Sul e as mulheres do Norte, todos falando sobre direitos, os homens brancos vão muito em breve ficar num aperto. Mas sobre o que todos aqui estão falando?
Aquele homem ali diz que as mulheres precisam ser ajudadas a entrar em carruagens, e erguidas para passar sobre valas e ter os melhores lugares em todas as partes. Ninguém nunca me ajudou a entrar em carruagens, a passar por cima de poças de lama ou me deu qualquer bom lugar! E não sou mulher? Olhem pra mim! Olhem pro meu braço! Tenho arado e plantado, e juntado em celeiros, e nenhum homem poderia me liderar! E não sou uma mulher? Posso trabalhar tanto quanto e comer tanto quanto um homem - quando consigo o que comer - e aguentar o chicote também! E não sou uma mulher? Dei à luz treze filhos, e vi a grande maioria ser vendida para a escravidão, e quando eu chorei com minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus me ouviu! E não sou mulher?...”
Sirvo-me do discurso ainda atual e coerrente de Sojourner para pensar os últimos números da violência contra a mulher no Estado mais populoso e rico do Brasil, São Paulo. Com base nas estatísticas de 11 fóruns regionais, uma pesquisa inédita mapeou pela primeira vez os índices de violência doméstica contra a mulher na cidade. O mapeamento revela a explosão de registros como se fosse este a amplidão dos avanços de serviços especializados para afalta de saúde da mulher, sua fragilidade e futilidade, seu corpo sempre a um passo de ser levado para a cama, seja para tratamentos médicos ou para o sexo - disto e para isto a mulher, bem dita e desdita mulher na sociedade comunicacional, sempre a se valer das pesquisas e estatísticas para se governar melhor o ingovernável. Eexemplo é o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, primeira vara especializada criada há dois anos, no Fórum da Barra Funda. Quando o serviço iniciou, eram 49 casos. A vara fechou 2010 com 2.522 inquéritos e processos em andamento.
Contudo, nada disso cala fundo no imaginário coletivo, são apenas dados estatísticos e cálculos operacionais, deixam de ser avaliados como realidade num instante, e eis que vem outros e mais outros dados de tudo qe se nos furta e nos fica pior, e só temos a nos servir da imagem-televisão, a imagem-vídeo, a numérica, a síntese, as imagens sem negativo e, portanto também sem negatividade ou referência. Elas são virtuais – é Jean Baudrillard a nos dizer –, e o virtual é o que termina com toda negatividade, logo com toda referência à história ou ao acontecimento.
Não é a vida real, é uma telenovela sempre a apresentar novas cenas de uma mesma desgraça cotidiana. Um dia é Aline, no outro, Alice, Eloá, Eliza, Mônica, Sabrina, Vera, Vanessa, tantos nomes - se se tratasse só de nomes. Trata-se, antes, de um mesmo destino torpe: assassinadas, agredidas, subjugadas. A cada 2 minutos, 5 mulheres são espancadas no Brasil. A sociedade sequestra a si mesma ao manipular nossas mazelas na telinha, sequestra gerações inteiras que absorvem avidamente essa ficção/real e essa ficção travestida de informação – e acaba que temos todos a mesma responsabilidade que aqueles que a fomentam. Ou melhor, não há responsabilidade em parte algum. A questão da responsabilidade nem mesmo pode ser colocada.
Mas talvez nem tudo esteja perdido. Uma vez mais é o comunicacional da sociedade a nos advertir. Rejubilemos. A Fundação Perseu Abramo, num trabalho divulgado recentemente, aponta frágeis alterações numéricas para as diferenças sociais entre homens e mulheres no Brasil, a exemplo do trabalho “Percepção de ser mulher: machismo e feminismo”, entre os anos de 2000 e 2010, em que consta: Tanto mulheres como homens apontam o espaço público como locus das “principais diferenças entre homens e mulheres nos dias de hoje”, ressaltando as desigualdades no mercado de trabalho (de oportunidades e salários) e o machismo socialmente disseminado. Apenas uma em cada cinco mulheres (20%) e cerca de um em cada quatro homens (27%) não vê diferenças entre homens e mulheres.
Contudo, o dia a dia é perverso. As mulheres experimentam toda a sorte de preconceitos. Se decide não casar, é solteirona, encalhada; se casa e tem filhos não pode passar de dois, quando ultrapassa essa “cota” é vista como irresponsável, desajustada; se trabalha fora de casa é negligente com os filhos. No cenário profissional em uma disputa entre homens e mulheres por cargos, funções ou promoções a mulher sempre perde, ela desempenha as mesmas funções, quase sempre tendo que agregar outras, ainda assim ganha menos. Reza, reza, faz tabelinha, e por vezes nem pode gozar de tanta preocupação - tudo para não engravidar, uma vez que a licença maternidade é extremamente mal vista nas empresas.
Sojourner Truth, em sua simplicidade tinha razão, por vezes é melhor fingir não ser mulher, ou mesmo, se transvestir em pedra!
Juliete Oliveira, Salgueiro-PE, 05.07.2011