AS MÃOS SUJAS DA LEI
Em alguns casos, como as situações revolucionárias ou, mais frequentemente, as de emergência, as estruturas profundas são escavadas pela ação coletiva e tornam-se, elas mesmas, a superfície da prática. Quando Boaventura de Souza pensou nas estruturas profundas falava em torno do direito e é também a essa plataforma que recorremos aqui para buscar entender a decisão do Supremo ao julgar a aplicabilidade da lei da ficha limpa. Ela que é resultado de ação coletiva e que durante décadas foi obrigada a permanecer submersa no grande útero do tribunal, impedida e adiada de prosperar, como outras leis e decisões favoráveis ao interesse público, leis supostamente mortas, como na parábola de Kafka das armas de crianças, impotetentes e bloquedas pelo poder maior da política, que nunca "brinca" em serviço.
Considerando o povo leigo, sem informação de causa ou mesmo quase asno na questão, a maioria dos juízes votaram contra essa vontade popular urgente e imediata de ver os homens de mácula excluídos do processo eleitoral. O argumento do ministro Gilmar Mendes considerou inconstitucional aceitar a aplicação da lei no mesmo ano de sua criação, o que segundo ele caracterizaria uma mudança das regras em pleno jogo eleitoral, desde sempre de cartas marcadas e trapaças grosseiras. Comprar voto, praticar corrupção (inclusive televisionada), entregar-se a improbidade administrativa de toda ordem, não fere a Constituiçã?
Impedir indivíduos como Jáder Barbalho de assumir uma cadeira no senado federal pelo estado do Pará, nem precisando acessar turva biografia pra se saber de quem se trata, é ferir a Constituição quando e em que tempo, senhor ministro?
Ao que parece essa decisão se ajusta à noção de poder numa determinada concepção normativa de interesses frívolos e escusos, que ferem a vontade coletiva da sociedade brasileira. O jogo bem jogado, aparentemente esgotados todos os lances, pra nosso azar e sorte do oportunismo jurídico. Observemos que a nova ética não é antropocêntrica, nem individualista, nem busca a responsabilidade pelas consequências imediatas. É uma responsabilidade pelo futuro. É de uma ordem muito mais vital que se trata, o da amplidão das possibilidades institucionais e sociais de uma nação que mais uma vez se macula. Prorrogada para a próxima eleição, até que lá as coisas se ajeitem mais uma vez aos modos dos fregueses mais abonados nos tantos tribunais. Ninguém mais se engane – somos por definição contrária uma democracia de fichas e mãos sujas.
Juliete Oliveira
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