sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Lavoura de muitas covas, tão cobiçada?

"A colheita é geral, o capinar é sozinho"
João Guimarães Rosa


Segundo Eisenstein, o primeiro movimento vai da imagem ao pensamento, do preceito ao conceito. A imagem-movimento (célula) é essencialmente múltipla e divisível, conforme os objetos, que são suas partes integrantes e entre os quais ela se estabelece. É exato esse movimento que se introduz quando se visualiza a região amazônica. Sim falo dela como de uma região pela consciência que tenho das partes que a constituem. Nascer e crescer no estado do Pará, o segundo maior em extensão territorial do Brasil, pode ser um privilégio ou um sofrimento, no meu caso, encaro como responsabilidade e oportunidade para falar de afeto, troca, coletividade, intensidade, experimentação, desterritorialização.

Foi esse exercício de sair, viajar, deixar o território que me possibilitou as armas visuais e conceituais para reforçar a amizade em detrimento da fraternidade pelo Pará e em extensão pela Amazônia. Pois, esse modo de relacionamento inventa a alteridade e se distancia do fraterno que, por sua vez, implica num processo de homogeneização, suprimindo as diferenças e não permitindo a fusão antropofágica das singularidades – revela-se uma força exterminadora do indivíduo. E nesse ponto empreenderemos curso para falar de algo pouco discutido quando se fala na Amazônia. O povo, a população – considerada apenas como densidade demográfica. O que pensa essa parte da paisagem sobre tanta singularidade?

Viver em um território alvo de cobiça, as mais variadas, não é algo acalentador. Ser considerado responsável por uma das maiores riquezas de biodiversidade da terra, não é algo corriqueiro. Viver dentro do pulmão, fígado, estômago e intestino dos outros é algo que sufoca. Possuir uma das maiores bacias hidrográficas do planeta – água doce, potável, pode ser asfixiante, matar de sede. Ser acusado pelo mundo de grilagem, pistolagem, biopirataria e os cambaus, o tempo todo é desafiador. Ser visto como alguém incapaz de cuidar do próprio quintal é amesquinhador.

Esse efeito dinâmico das imagens que recorrem desse território atravessa o mundo, gera polêmicas, pelo simples fato que, além de a Amazônia ser responsável em parte pelo “equilíbrio” da terra ela, também é um enorme “celeiro”, uma quase inesgotável fonte de recursos naturais, e quando o que está em jogo é o metal – ouro, ferro, manganês, agora industrializados pelas inúmeras siderúrgicas que povoam Marabá/PA, o que menos importa são os laços de amizade. Foi assim quando o então governador do Pará, Almir Gabriel, mandou desobstruir a rodovia PA-150, levando para o local 155 policiais militares – nenhum possuía identificação durante o ato, o que resultou na morte de 19 sem terra. Ora, sem terra?

De quem é a Terra? No Pará a terra não é definitivamente de quem mora nela! Ela é do latifúndio. Talvez soe anacrônico esse adjetivo, mas é assim. No Pará a terra é de quem tem bala, não na agulha, mas no cano do três oitão, como dizem por lá. No Pará a terra é da União – devoluta. Quando ouço esse termo meus ouvidos voltam-se aos anos oitenta: o Pará era área de segurança nacional e a palavra “posseiro” era proibida, falada quase num sussurro. E então a imagem que a expressão DEVOLUTA sucitava, é exatamente a que o trocadilho aponta sem nenhuma conotação poética – “devo o luto”. O luto de tantas mulheres, mães, filhas, esposas, viúvas. E ainda: no Pará hoje a terra é do gado, da soja, da exploração da madeira – não se deixem enganar pelos números de desmatamento reduzido, recém publicado. O que se saberá a partir desses números (tantas vezes maquiados) sobre os trabalhadores do transporte da madeira? E este é apenas um dos inúmeros itens da ilegalidade que o Estado promove na Amazônia. Esses homens cortam centenas de quilômetros floresta adentro para recolher toras de madeira. E eles, o que sabem do potencial de biomassa e do seqüestro de carbono existente ali? E ainda: da quantidade de fármacos existentes nas tenras folhas das árvores e nos arbustos amazônicos? Números imprecisos e anônimos que mais embotam do que elucidam e que a floresta engole e regurgita.

No Pará o IDH é pelo menos 20% abaixo do estabelecido pelos organismos internacionais. O índice de analfabetismo é singular, a criminalidade altíssima. E o fosso que separa riqueza e pobreza é mais fundo. As estradas tantas vezes asfaltadas – no papel e nos orçamentos, não levam às belas cidades, ao paraíso que se difunde. Levam, ao contrário, à mais descaso, abandono, falência pública, pobreza. Isso tudo não é como um filme de Godard, Salve-se quem puder (a vida), quando se aborda a visão dos agonizantes (“não estou morto, pois minha vida não passou ante meus olhos”)? Nesse caso seria preciso seguir a direção contrária. Dilatar a imagem em vez de contrair. Descrer dos números e escutar, escutar as vozes de uma outra configuração que os povos da floresta propõem ao mundo: o uso coletivo, ecológico, afetivo, imanente, ativo das riquezas da Amazônia.

Juliete Oliveira
Salgueiro-PE